12 setembro 2005

A caneca

É a ler uma soberba crónica de Lobo Antunes (Lição de Estética in Visão desta semana) e a brandir uma mangueira para lavar um terraço (duvidará decerto leitor que seja possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo e duvida muito bem porque de facto o é) que dou comigo a procurar memórias de brinquedos de infância. Creio que um só blog não chegaria para lhes dedicar espaço, não que tenham sido muitos (infelizmente não foram), mas sobretudo pela intensidade de prazeres que deles consegui extrair. As mais remotas recordações provêm de uma caneca de plástico. Não que uma caneca de plástico (vermelha por mera casualidade do destino que as improbabilidades estão assim - fazer gesto de unir os dedinhos de qualquer mão - de casualidades felizes) seja um brinquedo extraordinário, mas porque deve ter sido este o primeiro objecto que me deu efectivamente um verdadeiro sentido de posse. Era a minha caneca! As feiras anuais de província eram uma excelente janela de oportunidades para prendas. Num meio rural, onde as deslocações eram complicadas ou quando aconteciam tinham de ser cuidadosamente planeadas, não era normal ganharem-se presentes fora de época. Uma ida a um mercado, principalmente se a venda fora proveitosa, implicava trazer aos miúdos da casa um qualquer mimo. No caso foram três canecas de plástico, uma vermelha, uma verde e uma outra de que não restou memória, que saberá Deus porquê, resistiram ao triturar do tempo durante mais de trinta e cinco anos. Aquela era "a minha caneca", plástico grosso (uma novidade na época) e uma estampa que não duraria mais de meia dúzia de lavagens de um Santo António de auréola amarela que ainda hoje conseguiria reconstituir. Era a minha caneca, da qual eu era dono e senhor, concedendo apenas casuais autorizações para que dela se servissem e o supremo gozo de perguntar às minhas irmãs "onde é que está a tua?".

A caneca acompanhou toda a minha infância, do pequeno almoço à bebida ocasional de água fresca do cântaro da fonte, tornou-se companheira inseparável principalmente depois de ter descoberto que podia servir de amplificador a cantorias no vão da escada do sótão... (Experimente o leitor encontrar-se sozinho -apenas para evitar o embaraço da explicação a terceiros- e cante para dentro de uma caneca de plástico, e então, apenas então, ria-se de mim se motivo lhe sobrar...). Nunca a trouxe para Lisboa, nunca tive coragem, é ali o lugar dela, no armário da louça da intocada cozinha da casa do meu avô. Reencontro-me com ela de quando em vez, e com ela celebro (mesmo que sem sede!), um regresso à raiz, pelo sabor, pelo cheiro ou pela textura. Uma caneca com uma extraordinária vida de servidão, que honrosamente ainda serviu uma geração de tios e primos antes de ser efectivamente reformada e retirada do serviço activo. (Alguns dos que depois de mim dela beberam - e foram muitos mas não sei se cantaram - e que poderão vir a ler este blog, saberão, muito mais do que os restantes leitores, o que quero dizer com textura e cheiro).

Como se fosse hoje, consigo visualizar a minha tia a desfazer o cordel que unia as três canecas (as outras duas são das minhas irmãs) e dar-me um beijo com o seu inconfundível buço que me fazia cócegas. Maria do Olheiro ou tão simplesmente "Ti'Olheiro" que merecerá algumas linhas por via de histórias extraordinárias que não hão-de morrer comigo e que constituem autênticas fotografias do meu crescimento e descoberta do mundo. Haja tempo e arte para as contar. As mãos desta personagem ainda me propiciaram mais dois objectos de afecto: Um famosíssimo pífaro de folha de Flandres e pistão (do qual toda a gente da família se recorda e não propriamente pelas melhores razões) e um brinquedo de madeira cujo princípio básico de funcionamento nada mudou nos últimos séculos, o da roda de madeira com bicos que ao ser empurrada por um cabo fazia vibrar uma língua de lata. São sem dúvida estes os primeiros objectos de afecto, sendo que de facto não há amor como o primeiro.

Bonus Track (Apenas para quem leu a crónica de Lobo Antunes): Guardei religiosamente o meu espelhinho de bolso do Benfica, que reflectiu milhares de vezes a minha imagem em cuidadosos penteados "risco ao lado", de pente de osso legítimo, e que me ajudou em centenas de horas de brincadeiras solitárias a fazer sinais de luz às oliveiras e aos eucaliptos do lado de lá da ribeira. Muitos "terroristas" (estávamos em período de Guerra Colonial, não se esqueçam) eram "mortos" com aqueles lampejos mortíferos. Não havendo pistolas ou espingardas mesmo que de folha (e se chorei por muitas à porta de barracas de feira!), havia sempre uma enorme profusão de granadas, nascidas de montes de pedras que cresciam como diria o meu avô, em qualquer lado (rai's partisse'). Apesar de ter um amor imenso por um objecto que hoje é puro kitsch, fiquei com vontade de o enviar a Lobo Antunes pelo Natal. Só quem suspirou por um anel de lata, mesmo que do Benfica, poderá dar valor a um espelho de bolso com uma mal garatujada figura de Eusébio da Silva Ferreira.

Sentimental, eu? Pois sim. Mas agora pergunto-lhe: Quais são as memórias mais antigas que guarda de objectos de afecto? A caixa de comentários é sua, partilhe connosco! (Se eventualmente e por mera coincidência o leitor alguma vez tiver cantado para dentro de uma caneca de plástico, pode comentar anonimamente...)

8 comentários:

Ana Ferreira disse...

"não que tenham sido muitos (infelizmente não foram)" - o mal das crianças hoje em dia é terem brinquedos a mais, que não deixam espaço para a imaginação e para a criatividade.
Objectos de afecto... eu tinha um carrinho de madeira com um boneco colorido, quando se puxava o carrinho pelo cordel o boneco mexia as mãos onde tinha implantados uns martelinhos (bom eram redondos não sei o que lhes chamar) que iam batendo nuns ferrinhos à frente e gerando música. Esteve sempre no meu quarto e acabei por o oferecer a um miúdo vizinho muitos anos depois.

pb disse...

Eu tinha uma galinha de plástico, que funcionava tipo caixa, com tampa e tudo. Essa galinha pôs “ovos” durante muitos anos para mim e apenas para mim. Esses “ovos” apresentavam-se de várias maneiras, ora como rebuçados, como pedaços de chocolate, como amêndoas, enfim, um mundo de coisas boas. A minha avó sustentou este aviário de uma galinha só muito tempo, colocando lá as ditas guloseimas. O que é certo é que eu acreditei muito nesta história que me fez sonhar anos a fio...

(Recuperei esta galinha que está aqui mesmo no meu escritório, perto do meu imac, há uns 10 anos depois da morte da minha avó. Ainda é minha!)

Anónimo disse...

O meu é um relógio de parede de pendula que pertenceu aos meus Avós Paternos que moravam em Évora numa quinta dentro do perimetro urbano da cidade. Desde muito novo me lembro de constantemente pedir o relógio aos meus Avós quando morressem para ter uma lembrança deles. Como iamos muitas vezes aos meus Avós, muitas vezes adormeci eu ao som do constante tictac. Este relogio está actualmente em casa de meus Pais.
Outro objecto de afecto é o meu 1º computador, um Timex 2048 que ainda possuo, que me mostrou como o mundo da informatica era fascinante (na altura).

Anónimo disse...

toc-toc-toc. Isto tá a gravar? É a primeira vez que escrevo nestas coisas... ha-hammmm...
Tema muito interessante. Tocou-me particularmente porque me levou a pensar quanto somos afectados por "simples" objectos que nos (e)levam a imaginação. Uma caneca ou qualquer outra coisa. É pessoal. É a nossa imaginação e nada a fazer. Pensei e repensei.
Tive a "felicidade" de ter tido uma infância muito radical e inovadora no que toca a objectos lá por casa. O meu pai era técnico de electrónica na Força Aérea e a minha avó era emigrante nos EUA. No início dos anos 70 isto era explosivo.
Entre os brinquedos Tonka, outros tele-comandados, helicópteros grandes, e foguetões a pilhas a andar à volta dentro do quarto pendurados no tecto por cediela (tudo absolutamente condenável nos dias de hoje - um perigo, até), o que mais me agarrou foi um gira-discos Philips onde ouvi pela primeira vez o Superstition de Stevie Wonder a 45rpm. Não tenho palavras para justificar o que o gira-discos sempre significou para mim. E nem tento porque não sei o porquê. Não o vejo há mais de 20 anos. Nem me lembrava dele. Mas hoje que tocaram no assunto, é a ele que devo esta honra. É o ícone da minha infância.
Ah - Strawberry.
Podem ver aqui.

Francisco disse...

Curiosamente os meus objectos de afecto durante a infância foram sobretudo livros. Mas ao ler o texto do pedro lembrei-me de um brinquedo especial: um carro de corrida de fórmula 1 dos anos 60. Era um carro com 50 cm, numa única peça de plastico vermelho moldado, com dois eixos a ligar quatro rodas de 15 cm de diâmetro.
Usávamo-lo (eu e os meus 5 vizinhos e colegas de brincadeira) para ver quem o conseguia fazer voar por uma distãncia mais longa, empurando-o por uma rampa de areia feita num dos quintais das nossas casas. Era um veículo robusto e pesadito, sem partes que se soltassem ou partissem. O que acabou por acontecer é que a violência das aterragens começou a alargar os buracos em que o eixo frontal atravessava o corpo do carro.

Anónimo disse...

comecei a pensar no brinquedo que mais me marcou... lembrei-me (agora mesmo de outro, já lá vamos...) imediatamente de dois: um urso de peluche azul (ironico não é?...) com o qual partilhei muitas conversas e uma guitarra de plástico, toda partida e sem cordas, que retirei de um saco de plástico preto (daqueles do lixo) com montes de brinquedos que um engenheiro amigo do meu pai lhe tinha entregue. só liguei a este. 4 anos e uma guitarra nas mãos, estava histérico, até fotos tirei com ela. outro brinquedo (aquele que me lembrei agora mesmo) foi um orgão castanho com 3 oitavas, funcionava com 8 pilhas. era lindo! outro (este do meu pai) que me marcou foi um gira-discos da crown que comprámos na rua direita em cascais há mais de 25 anos. ainda o tenho! este contaminou-me com uma doença crónica, incurável e galopante que é o amor pela música e pelo vinyl. podem tirar-me tudo, menos os meus discos.

hoje tenho um outro brinquedo: uma fender stratocaster comprada há 12 anos depois de um verão sem praia e a acartar baldes de argamassa.

por fim, já que falamos de memórias e do glorioso, não me esqueço do cheiro, do tacto, do sabor, do som e da visão que tive quando entrei pela primeira vez na velha Catedral. Pedro, deves saber do que estou a falar! Benfica-13 riachense-1 Bento na baliza e um relvado lindo. mais uma doença: o futebol e uma forma de viver: o Glorioso!

coquet disse...

tenho 22 anos e ainda canto para dentro das canencas e para meu desgosto, sosinho.

mw disse...

A minha resposta é grande demais para caber aqui nos comentarios...

http://escrevoporquesim.blogspot.com/2005/09/espingarda.html