08 setembro 2005

A "coisa"

Eu tinha doze anos, mais coisa menos coisa, quando um dia no primeiro ano de Liceu descobri que tinha cometido o supremo esquecimento de ter deixado em casa as famosas sapatilhas de ginástica. (Sim sapatilha branca com o belo elástico no peito do pé, nada de modernices Nike ou Rebook, que o mais que havia era uns Sanjo que custavam 450$00, preço que os colocava apenas ao alcance de alguns...). Não achei melhor alternativa do que ir visitar o Professor de Ginástica, dando-lhe uma desculpa do género "não me estou a sentir bem". Ensaiado o discurso, lá fui a caminho do ginásio. Estava tudo muito bem calculado, ainda faltavam duas horas para a aula, mas quis despachar o assunto logo ali. Quando cheguei à sala de professores de ginástica, havia à porta da mesma, uma mocinha que esperava também a sua vez de conferenciar com o professor. "Também vens pedir dispensa?" Lá disse que sim e fui informado de que também ela vinha ao mesmo, invocando "a coisa" como argumento. Fiquei na mesma, como imaginarão. Desconhecia por completo a existência da "coisa" que permitia obter dispensas. O professor veio ao pequeno átrio, a miúda bichanou-lhe qualquer coisa ao ouvido e ele prontamente assentiu à dispensa da aula. Já eu não tive a mesma sorte! O Professor desarmou-me com o facto de ainda faltarem duas horas para a aula e de eu poder eventualmente vir a melhorar, coisa para a qual não me tinha preparado... Fiquei absolutamente danado! Não era justo que alguém invocasse a "coisa" e obtivesse dispensa e eu, coitadinho, não a tivesse com a mesma facilidade! Lá tive de ir a casa, sacrificando dois bilhetes pré-comprados de Metro (dos cor de rosa se bem se recordam dessas antiguidades) e voltando com as benditas sapatilhas a tempo de participar na famigerada aula. Mas não me esqueci da humilhação e picado pela minha curiosidade recorri ao Elias. O Elias era um colega de turma, um daqueles casos de insucesso escolar com que todos nos cruzámos mais tarde ou mais cedo. Tinha já quase 16 anos e ao pé de nós era um adulto, fosse em tamanho, fosse em experiência das coisas da vida. Era uma espécie de "pai" da turma, chamado a intervir sempre que era necessário apaziguar alguma discussão (normalmente era com uns calduços deveras eficazes), ou proteger alguma incursão de gente de outras turmas. O Elias era imprescindível, principalmente nas jogatanas de pátio, e era certo sabido que seria o primeiro a ser escolhido para a formação das equipas e era meio caminho andado para a vitória no caso de termos a sorte de fazer parte da equipa dele. Não me recordo com detalhe de como abordei o Elias. Sei que estávamos numa mesa do pequeno bar da escola e que o Elias não ficou muito à vontade com a explicação. Expliquei-lhe o assunto com todos os pormenores. "Oh pá, elas têm uma "coisa" de vez em quando e não podem fazer ginástica, estás a morder?" (Quem tiver a minha idade, sabe que "morder", "domar a cena" ou simplesmente topar são sinónimos...). "Mas isso é só nas miúdas, nós não temos "a coisa" e foi por isso que não te deram dispensa". Não fiquei absolutamente nada convencido! Ora, se eu tinha em casa as minhas duas irmãs, como é que era possível que "a coisa" me tivesse passado despercebida? O que é certo é que passara. Mas as minhas suspeitas de que o Elias não estava completamente ciente do que me estava a tentar explicar acabaram por se confirmar. "Eu não sei explicar bem, Pedro, mas aquilo tem um nome. Não sei bem como se chama, mas acho que é a "amestração". A coisa agravava-se a cada minuto. De "a coisa", passávamos a ter um nome designativo e definitivamente eu estava "a milhas" dessa tal "amestração"...

Nunca perdi muito tempo a esclarecer os meus mistérios. Aniceto que se preze vai à luta assim que é provocado e aproveitando a hora de jantar (reunião sagrada da família Aniceto, a que jamais se poderia faltar sem um motivo de força maior) avancei desassombrado.

Posto em revista o dia como era hábito no jantar familiar, a pergunta saltou, dirigida à minha mãe:

"Olha, o que é a "amestração"?"

Lembro-me do ar surpreendido da minha mãe, a ponto de ter deixado cair o talher, o que por si só não prenunciava nada de bom. O meu pai, surdo como sempre foi nem deu por nada, ainda para mais eu nem sequer tinha falado alto a ponto de que me ouvisse. Não perdi muito mais tempo nestas apreciações. Uma dor excruciante na minha canela esquerda, proveniente de um valente pontapé debaixo da mesa, executado com maestria pela Amélia, a minha irmã mais velha, chamou-me à razão. Não sei como, (talvez à força de caneladas!) o assunto morreu ali. Devem ter-me desviado a atenção com outro assunto qualquer e volvidas vinte e quatro horas tive de voltar a recorrer ao Elias. Para meu espanto, o Elias disse-me que eu tinha de esperar alguns dias antes de me dar uma resposta. Não o larguei mais, a ponto de assim que avistava nos corredores me dizer "Calma! Ainda não é hoje". Mas o dia veio em que Elias me podia responder. Da sua mala, uma mochila de lona do Exército que era a inveja de todas as turmas, saiu um álbum reluzente que mais tarde vim a saber ter sido surripiado pelo próprio na Bertrand do Chiado. Título "Educação Sexual dos 12 aos 16", livro que viria a ser lido por quase todo o Liceu nos anos seguintes, circulando de mala em mala em regime absolutamente clandestino, e que deve ter contribuído mais para a educação sexual de toda a Machado de Castro que milhentas conversas familiares sobre o assunto.

P.S.- Acabaram durante meses, os jogos de bilhar no Jardim Cinema nos tempos mortos! Passaram a organizar-se excursões à Bertrand do Chiado somente com objectivos de investigação! Até ao dia em que mudaram o sacana do expositor de um recanto escondido para junto da caixa de saída... Nunca lhes perdoarei!

11 comentários:

Ana Ferreira disse...

É de estranhar que tal facto te tenha escapado, tendo tu duas irmãs e sendo tão curioso ;)

Anónimo disse...

Parabéns pelo blog, já está na bookmark bar. Quanto à coisa, um aluno de medicina de Coimbra referia-se a ela como "Uma lagrima de um utero desiludido" quem diria que podemos referir-nos à coisa de forma poética!

Um Abraço

M Carmo

Anónimo disse...

FireGirl loves you all (right on)...

www.firegirl.co.pt

:)

Anónimo disse...

E com o passar do tempo a coisa complica-se. Agora há um síndrome pré-coisa, durante a coisa, e pós-coisa. O que significa que as as irmãs nunca têm que fazer ginástica.

pb disse...

O "Reflexões de um cão com pulgas..." arrancou de vez!
Estava a ver que não...
Parabéns, li tudo, de ponta a ponta, já está nos meus favoritos.

Paulo Bastos (Satie)

Licas disse...

Nunca pensei rir-me tanto com a "coisa"...

Patricia Lousinha disse...

A coisa de amestrar tem, também, o seu pê de piada...

Anónimo disse...

Era a "coisa" e a "história" eheheheh
Mas eu, depois do 25Abril tive direito a educação sexual no ciclo preparatório! Com manual escolar e tudo!! Nunca tive foi dispensa de educação física, mas tb nunca pedi :) Eu sou da geração tampão.
Quanto so síndrome pré-menstrual fique o engraçadinho ali debaixo sabendo que é bem incomodativo...mas quando o sexo é mesmo do bom não há mulher que se incomode nem com o síndrome nem com a dita menstruação...

Pedro Aniceto disse...

"The sex was so good that even the neighbours had a cigarret?" ;)

Tuaregue disse...

Hahahahahaha!

Espectáculo!

Este teu amigo Elias era mesmo porreiro, tal o ponto de ter arranjado o livro com a explicação da "coisa"

Paula disse...

E de uma pequena conversa no twitter, nasce mais um belo post, que "coisa".