Tropeço literalmente em R. nas já quase por mim esquecidas ruelas de Cascais. R., companheiro e cúmplice de brincadeiras de anos, está, à semelhança de todos os componentes do nosso grupo, mais velho, mais gordo e mais calmo. Não nos víamos desde o século passado mas rapidamente nos actualizamos. Em minutos alinhamos as perguntas regulamentares sem que pareça não esquecermos nenhuma. As que querem saber da saúde do próprio, dos pais, das irmãs e do irmão e do que é feito, cá vamos, mais velhos e mais gordos pois, isso já nós sabemos, meu menino há séculos que te não via. Deixo para o final a inevitável pergunta sobre o estado do stock. Não que R. seja corrector, longe disso. Apenas que é importantíssimo perguntar-lhe, em tom de ironia (e sempre em tom de ironia) pelo stock, já que R. está ligado ao import/export de "matérias primas" de Leste e consequentemente a uma das mais prósperas indústrias deste país. Para bom entendedor, meia eslovaca basta... Nenhum remoque, nenhum juízo de valor que cada um sabe de si e Deus saberá de todos se estiver atento e com os ficheiros devidamente indexados.
R. ficará para sempre nas minhas memórias de adolescente. Capaz de trajar sempre a rigor para a época e isso significava invariavelmente a bela botinha de cano, mai'la bela calça de ganga branca acompanhada da camisinha da moda, preferencialmente amarela com golas com pano que hoje, supervisionado o corte por um técnico chinês, era capaz de produzir outro exemplar. Era um dos "bonecos" do grupo, cabeleira farta penteada vezes sem conta no reflexo das montras ou no retrovisor dos carros estacionados. Era assim uma espécie de vestido para matar, mas no bom sentido. R. era dos pequenos machos em vias de o ser, na glória dos nossos quinze anos, o mais dançarino e até o mais ousado nas galanterias e namoros isto para não falar da sua veia futebolística. Poucas coisas ou figuras do sexo oposto lhe escapavam fosse em lábia ou imaginação. Veio então a dar-se o caso de nos encontrarmos todos numa festa de aniversário. Coisa encenada a rigor como era dos costumes dos anos 70. O lustre da sala recoberto de celofane vermelho (ah l'ambiance!), uma bola de espelhos desviada algures (vocês não vão querer saber...) e o som. O som! Um pickup Sylvania, mono, gerido com maestria pelo melómano do grupo (estás bom, Francisco?), munido da emblemática mala de LP's e alguns singles de 45 r.p.m., vejam lá como são as coisas, sem um único scratch (quem arranha paga uma agulha nova!), os tempos mudaram muito oh se mudaram...
Se bem se recordam os de antanho, as festas dividiam-se em três tempos religiosamente marcados, a saber, shakes, morfes e slows. Ah pois é! Tão certo como o cão ter pulgas, eram assim mesmo as operações, sendo que no caso os shakes não podiam ser muito agitados pois corria-se o risco de desabar a sala mais os celebrantes no terceiro andar ou, mal menor, saltar algum prato da cristaleira. E isto de mudar a arrumação das salas de visitas dos pais dos amigos tinha muito que se lhe dissesse. Alguns de vós saberão do que falo, outros mais do que os uns propriamente ditos.
Os morfes eram, regra geral, rápidos não só porque a juventude é deveras garganeira de hábitos, mas também porque pela familiaridade entre convivas conhecíamos já de gingeira os dotes culinários da mãe do aniversariante, fosse ele ou ela quem fosse, e era então mais simples planear as marcações cerradas a croquetes e rissóis, mousses ou pudins, bolos ou refrigerantes, asas de frango ou fatias de carne assada. Para o fim (e nisso os tempos não mudaram nada, não é?) sobravam sempre as famosíssimas sandes triangulares de queijo e fiambre e um outro pão de leite, prontamente refundido aqui ou ali, que a tarde era sempre longa e nunca se sabia o grau da fome temporã.
A grande novidade dessa tarde era a presença de S. Louríssima, espécie absolutamente extinta à nascença nesse bando de foragidos juvenis, era uma recente aquisição desse ímane de seres e haveres do grupo. S. era extraordinariamente bonita e despertava suspiros aqui e ali, fazendo bater mais acelaradamente os corações dos descomprometidos muito embora os comprometidos de quando em vez se confessassem atentos às partidas e chegadas do aeroportos sentimentais. R. não perdeu tempo e foi avisando logo ali dos limites territoriais que estava disposto a impor aos amigos. As cumplicidades masculinas funcionaram desde logo, alguns houve que não foram sequer avisados por ser absolutamente desnecessário devido ao absurdo número de borbulhas que tentaram esconder com montanhas de bisnagas de Clearasil e assim se passou parte da pausa alimentar com trocas de olhares e consequentes assentimentos de cabeça.
Levantados os pratos, arrastada a mesa, entrava-se assim na recta final da festa com o necessário fecho de portadas e janelas para que o cenário se compusesse. Por vezes era necessário montar uma delicada rede de subterfúgios que levasse os adultos a refugiar-se na cozinha e noutras divisões da casa, nem que para isso alguém tivesse de se sacrificar e passar o resto da tarde a discutir receitas de croquetes e rissóis com um grupo de velhinhas e menos velhinhas que acediam de imediato a tão extraordinário e inusitado pedido. Gente houve que repetiu a graça durante anos e ainda hoje não saiba estrelar um ovo, o que prova que certos pecados há que não têm salvação.
Quando tudo se compôs, R. estava pronto para pedir a S. a honra da dança, sucesso que alcançou de imediato. O que não se esperava de todo, excepto R. evidentemente, é que as danças se sucedessem interminavelmente, levando ao desespero o restante grupo de aves rapaces que se entretinham noutras caçadas sem nunca perder o sentido de uma eventual oportunidade. Que nunca veio. De olhares cúmplices depressa se passou à fase do comentário brejeiro, sempre em surdina como convirá na ocasião. Mas nada. R. estava em absoluto, imparável.
O aproximar dos finais de festas deste tipo levavam sempre a rapaziada a conluiar-se para um encontro fora dali, onde se pudessem apreciar façanhas e conquistas, ou tão simplesmente carpir mágoas de amores nem sempre correspondidos. Depressa me chegaram os planos detalhados de um encontro nos esconsos de uma ruela próxima, a que nenhum de nós faltou, nem mesmo o aniversariante.
R. viu-se de súbito engolfado por um bando de curiosos sedentos de novidades e detalhes, muito mais de detalhes do que do resto. Nas memórias do grupo nunca se apagará o diálogo desse princípio de noite, digno de figurar em qualquer manual de "kiss and tell"...
-Então?
-Então o quê?, retorquiu R. inchado de orgulho e disposto a fazer render o suspense.
-Então, pois, conta lá...
-Eh pá. foi bom, muito bom!
-Mas muito bom, como?
-Pá, só te digo, foi muito bom...
-Caraças, mas bom só não chega, tens de contar!
-Eh pá, eu conto, mas foi muito bom!
-Mas fizeste alguma coisa?
-Eh pá, fiz!
-Mas fizeste o quê?
-Eh pá, apalpei-lhe as costas todas!
R. ficará para sempre nas minhas memórias de adolescente. Capaz de trajar sempre a rigor para a época e isso significava invariavelmente a bela botinha de cano, mai'la bela calça de ganga branca acompanhada da camisinha da moda, preferencialmente amarela com golas com pano que hoje, supervisionado o corte por um técnico chinês, era capaz de produzir outro exemplar. Era um dos "bonecos" do grupo, cabeleira farta penteada vezes sem conta no reflexo das montras ou no retrovisor dos carros estacionados. Era assim uma espécie de vestido para matar, mas no bom sentido. R. era dos pequenos machos em vias de o ser, na glória dos nossos quinze anos, o mais dançarino e até o mais ousado nas galanterias e namoros isto para não falar da sua veia futebolística. Poucas coisas ou figuras do sexo oposto lhe escapavam fosse em lábia ou imaginação. Veio então a dar-se o caso de nos encontrarmos todos numa festa de aniversário. Coisa encenada a rigor como era dos costumes dos anos 70. O lustre da sala recoberto de celofane vermelho (ah l'ambiance!), uma bola de espelhos desviada algures (vocês não vão querer saber...) e o som. O som! Um pickup Sylvania, mono, gerido com maestria pelo melómano do grupo (estás bom, Francisco?), munido da emblemática mala de LP's e alguns singles de 45 r.p.m., vejam lá como são as coisas, sem um único scratch (quem arranha paga uma agulha nova!), os tempos mudaram muito oh se mudaram...
Se bem se recordam os de antanho, as festas dividiam-se em três tempos religiosamente marcados, a saber, shakes, morfes e slows. Ah pois é! Tão certo como o cão ter pulgas, eram assim mesmo as operações, sendo que no caso os shakes não podiam ser muito agitados pois corria-se o risco de desabar a sala mais os celebrantes no terceiro andar ou, mal menor, saltar algum prato da cristaleira. E isto de mudar a arrumação das salas de visitas dos pais dos amigos tinha muito que se lhe dissesse. Alguns de vós saberão do que falo, outros mais do que os uns propriamente ditos.
Os morfes eram, regra geral, rápidos não só porque a juventude é deveras garganeira de hábitos, mas também porque pela familiaridade entre convivas conhecíamos já de gingeira os dotes culinários da mãe do aniversariante, fosse ele ou ela quem fosse, e era então mais simples planear as marcações cerradas a croquetes e rissóis, mousses ou pudins, bolos ou refrigerantes, asas de frango ou fatias de carne assada. Para o fim (e nisso os tempos não mudaram nada, não é?) sobravam sempre as famosíssimas sandes triangulares de queijo e fiambre e um outro pão de leite, prontamente refundido aqui ou ali, que a tarde era sempre longa e nunca se sabia o grau da fome temporã.
A grande novidade dessa tarde era a presença de S. Louríssima, espécie absolutamente extinta à nascença nesse bando de foragidos juvenis, era uma recente aquisição desse ímane de seres e haveres do grupo. S. era extraordinariamente bonita e despertava suspiros aqui e ali, fazendo bater mais acelaradamente os corações dos descomprometidos muito embora os comprometidos de quando em vez se confessassem atentos às partidas e chegadas do aeroportos sentimentais. R. não perdeu tempo e foi avisando logo ali dos limites territoriais que estava disposto a impor aos amigos. As cumplicidades masculinas funcionaram desde logo, alguns houve que não foram sequer avisados por ser absolutamente desnecessário devido ao absurdo número de borbulhas que tentaram esconder com montanhas de bisnagas de Clearasil e assim se passou parte da pausa alimentar com trocas de olhares e consequentes assentimentos de cabeça.
Levantados os pratos, arrastada a mesa, entrava-se assim na recta final da festa com o necessário fecho de portadas e janelas para que o cenário se compusesse. Por vezes era necessário montar uma delicada rede de subterfúgios que levasse os adultos a refugiar-se na cozinha e noutras divisões da casa, nem que para isso alguém tivesse de se sacrificar e passar o resto da tarde a discutir receitas de croquetes e rissóis com um grupo de velhinhas e menos velhinhas que acediam de imediato a tão extraordinário e inusitado pedido. Gente houve que repetiu a graça durante anos e ainda hoje não saiba estrelar um ovo, o que prova que certos pecados há que não têm salvação.
Quando tudo se compôs, R. estava pronto para pedir a S. a honra da dança, sucesso que alcançou de imediato. O que não se esperava de todo, excepto R. evidentemente, é que as danças se sucedessem interminavelmente, levando ao desespero o restante grupo de aves rapaces que se entretinham noutras caçadas sem nunca perder o sentido de uma eventual oportunidade. Que nunca veio. De olhares cúmplices depressa se passou à fase do comentário brejeiro, sempre em surdina como convirá na ocasião. Mas nada. R. estava em absoluto, imparável.
O aproximar dos finais de festas deste tipo levavam sempre a rapaziada a conluiar-se para um encontro fora dali, onde se pudessem apreciar façanhas e conquistas, ou tão simplesmente carpir mágoas de amores nem sempre correspondidos. Depressa me chegaram os planos detalhados de um encontro nos esconsos de uma ruela próxima, a que nenhum de nós faltou, nem mesmo o aniversariante.
R. viu-se de súbito engolfado por um bando de curiosos sedentos de novidades e detalhes, muito mais de detalhes do que do resto. Nas memórias do grupo nunca se apagará o diálogo desse princípio de noite, digno de figurar em qualquer manual de "kiss and tell"...
-Então?
-Então o quê?, retorquiu R. inchado de orgulho e disposto a fazer render o suspense.
-Então, pois, conta lá...
-Eh pá. foi bom, muito bom!
-Mas muito bom, como?
-Pá, só te digo, foi muito bom...
-Caraças, mas bom só não chega, tens de contar!
-Eh pá, eu conto, mas foi muito bom!
-Mas fizeste alguma coisa?
-Eh pá, fiz!
-Mas fizeste o quê?
-Eh pá, apalpei-lhe as costas todas!
1 comentário:
"uma bola de espelhos desviada algures (vocês não vão querer saber...)" - claro que queremos saber. Onde já se viu escamotear pormenores?????
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