"Era uma vez", e todas as histórias que se prezam, começam por era uma vez, a não ser que se trate de um arranque de Windows 98 em que as histórias começam por "era duas, três ou mais vezes", uma floresta. Uma floresta aprazível que não envergonharia um catálogo de venda de florestas se os houvesse. Ervas verdes, flores silvestres, árvores frondosas, abelhas zumbindo de corola em corola, esquilos aos saltos como adeptos do Benfica (trata-se, não esquecer, de uma história bastante antiga!) enfim, um autêntico paraíso.
Nessa floresta, a nossa floresta para efeitos desta história, viviam inúmeros animais. Veados, pássaros de toda a espécie, javalis, toupeiras e todos aqueles de que agora não me lembro e que sendo bastos os que ficam por nomear, enfadariam por decerto o estimado leitor.
Só muito de quando em vez esta harmonia era quebrada, quiçá por algum caçador que de arma em riste entrasse no perímetro florestal, ou por alguma família que resolvesse armar um picnic numa das muitas agradáveis clareiras. Mas era uma floresta muito calma. Qualquer das excepções de que falei atrás, aconteciam apenas por regra à Quinta-Feira ou ao fim de semana e os restantes dias eram absolutamente pacíficos.
Uma simpática família de coelhos, figura central desta história como mais adiante se verá, vivia a sua feliz existência no tronco oco de um carvalho, sendo que compete ao narrador nesta fase da história, certificar-se inequivocamente de que todas as teclas estão funcionais, principalmente o "v", sob o qual tinham escavado as suas luras, que no total era um autêntico T4, com sala, cozinha, casa de banho, dispensa, cenouródromo (que é assim uma espécie de Home Cinema para coelhos) e quartos em profusão.
O problema habitacional não se punha, bastava Mamã Coelha fazer cara feia e bater as patas traseiras, para não falar em greves de sexo (e os coelhos são criaturas bastante peculiares nesse capítulo) para que Papá Coelho tivesse de largar as folhas do "Floresta Times" ou interromper um episódio do "Notícias da Caça" (Papá Coelho apreciava bastante o género de filmes de terror...) e ir cavar mais uma divisão. Parece simples, é simples e garantia-lhe o sossego (e o sexo!) por mais quinze dias.
Pois foi precisamente numa dessas pausas entre pressões psicológicas que Quincas foi concebido. Não estranharemos o nome, afinal Quincas é nome de coelho célebre, segundo Papá Coelho nem terá sido dos mais difíceis de escolher com a excepção talvez do primogénito, nascido por alturas do primeiro filho do Duque de Bragança, ao qual Mamã Coelha resolveu clamar de sua graça Joel Manuel Gabriel Rafael Ezequiel Pimentel Destroce Destroce Que Já Bateu, mas isto são outros contos que nasceu perfeito de orelhas e com óptimos dentes que é o que interessa ao comum dos florestais habitantes e que hoje, já crescido e casado é consultor de Tecnologias de Informação em Nova York por causa de uma infelicidade com um cesto de almoço de uma família de emigrantes nos Estados Unidos.
Ainda hoje Papá Coelho se vangloria "Dou quinze enquanto Mamã Coelho diz o nome do ganapo", mas isto claro, em surdina e entre amigos machos, que Mamã Coelho lhe não permitiria tais liberdades assim às escâncaras. E estávamos nisto, a vida corria doce, Mamã Coelho grávida mas coelha trabalhadora, vigilante num Centro Comercial, com horário fixo graças a Deus e ao sindicato, casa trabalho, trabalho casa, uma rápida surtida às compras, uma ida ao cabeleireiro de quando em vez para compor as orelhas, Papá Coelho, encarregado da construção civil, ocupado com a edificação de um Centro de Dia para morcegos que coitados toda a gente sabe que não têm onde cair mortos quando o sol rompe a copa das árvores da floresta, apenas às Quartas-Feiras interrompia o rame rame para uma partida de cartas com os amigos, paradas baixas, 3 cenouras por jogo, é apenas um jogo entre amigos.
Bem, mas dizia eu a vida corria doce e sem sobressaltos, agora há que fazer avançar o tempo, nestas histórias nem é difícil adiantar ou atrasar o relógio temporal, já se gastou um ror de linhas só para dizer o que toda a gente sabe, era uma família de coelhos e tal. Nestas histórias como nos filmes, basta meter uma transição iPhoto tipo Droplet, um pequeno clip com sininhos e pimbas um tipo atira com dez anos para a frente, número exageradíssimo para coelhos, convenhamos que cinco bastavam, vamos lá, imaginem que o texto treme e se desfoca, ouvem-se os inefáveis sininhos e avançamos uma carrada de anos.
O cenário não mudou muito. Papá Coelho no sofá, desfolhando o jornal enquanto a TV debita em volume médio a narração de um jogo de futebol, os locutores dizendo que Pinilla ainda se esforça bem aos cinquenta anos apesar de só marcar de dez em dez, Papá Coelho está a cinco anos da reforma, merecida segundo o próprio, queira Deus e a Comissão de Inquérito dos Assuntos Florestais se não intrometa por causa de uns fumos de corrupção que ultimamente têm grassado na empresa, que onde há fumo há fogo e a coisa pode tornar-se dramática se não nos tivermos esquecido de que estamos numa floresta.
Papá Coelho baixou o jornal por uns instantes e está nesta altura a observar Mamã Coelha debruçada sobre a máquina de lavar louça, pompom proeminente, capaz de entusiasmar o velhote que ainda se sente ali para as curvas, as da vida e estas. Deixa escapar um valente assobio galante (imagine-o leitor que ao narrador ninguém paga para que faça milagres linguísticos), Mamã Coelha soergue-se, censura-o com o olhar e deixa escapar "Vê lá se te cai um dentinho!" Isso é que não, isso é que não, para um coelho é pior que uma disfunção eréctil, bem não exageremos, mas que a escolha não é fácil, lá isso não é.
"Olha que o miúdo está a ver!" O miúdo é, adivinharam, Quincas. Cresceu, está um coelho juvenil saudável, apenas o trivial sarampo e duas crises de mixomatose, tomara muitos, ah isso tomara!. "E temos de falar por causa dele, vamos ter um problema, agora que se lhe acabou o coelhário e falta um ano para ir para a Escola, não sei bem o que vamos fazer..." Ora, cria-se como os outros, fica em casa durante o dia, espaço não falta, não ficará enfezado porque pode correr por aí à vontade!".
Papá Coelho não entendia a preocupação e mais apreensivo ficou quando lobrigou uma lágrima nos bigodes de Mamã Coelha."O que é que se passa, mulher?" Que sim mais que também (era um velho anseio do narrador introduzir no texto uma expressão portuguesa tão parva quanto esta, foi agora, não ficou mal de todo), e tu homem para que lês tanto jornal, não sabes o que por aí anda nesses bosques, todos os dias se ouve falar de desgraças, raptos, violações, tu vê lá que ainda há um mês um Porco Espinho foi violado à luz do dia, era um bando, um gang. "Um gang?" Sim, um gang de cágados. Coitadinho, borrou-se de medo. "Queres dizer que ficou sem o assento ou sem o acento?"
Francamente, só pensas nisso, ainda só apanharam dois, um carro patrulha com duas lesmas ao volante deu com eles mas ainda não conseguiram deitar a mão a todos, talvez daqui por um mês, mais coisa menos coisa. Mamã Coelha. emocionada, limpou mais três lágrimas que faziam dos seus bigodes uma espécie de candeeiro Made in China à medida que lhe desciam pelas capilosidades e foi com o focinho no avental que a custo escondeu um soluço indisfarçável.
"Então Mamã, que é isso?" Mas há mais, Papá, há mais! Diz-se que anda por aqui um lobo! Troquemos neste mesmo instante a turma dos sininhos do "flashback", coloquemos em cena uns trombones de varas para um ambiente de perfeito pânico (não cabem todos, o narrador lamenta-se, não há fosso de orquestra nesta história, que foi desenhada pelo mesmo arquitecto da Casa da Música...) e temos o cenário completo, Papá Coelho com todos os pêlos eriçados, dentes rilhando, e ar angustiado. "Oh pai, parece que viste o déficit, olha para as orelhas dele que até tremem!".
Mal podia Quincas imaginar na sua juventude e falta de experiência das coisas da vida, a paterna preocupação. Um lobo era a derradeira preocupação dos animais felizes, e se se diz derradeira é porque o era mesmo, muitos dos infelizes que foram apanhados não conseguiram fazer mais nada, alguns ainda nem tinham conseguido gritar "LOB..." e eram, num ápice deglutidos, sem dó nem ketchup.
"Temos de fazer alguma coisa!" disse Papá Coelho. Ora, sabemos de antemão que todas as pessoas que não sabem o que fazer nas suas vidas perante a inevitabilidade da desgraça ou ameaça de holocausto, dizem a mesma coisa. E para parecerem decididas e convincentes, colocam por sua vez as mãos na cintura e repetem com ar sereno, martelando as reticências finais enquanto pensam naquilo que efectivamente vão tentar fazer. "Temos de fazer alguma coisa...".
Papá Coelho alinhavou mentalmente o óbvio (coisa que Ronald Koeman, outro simpático láparo de outras fábulas das que metem águias e dragões não conseguiu ainda fazer e já lá vão três jornadas...). "Vamos reforçar a defesa! Trago lá da obra umas tábuas e reforça-se a porta. Metem-se trincos nas janelas da cave e esta lura ficará forte e resistente como nunca se viu". "Então, mas o moço vai ficar trancado em casa durante um ano inteiro?", perguntou Mamã Coelho. "Não há outro remédio! Não podemos arriscar, isto com lobos à solta na floresta, não se pode facilitar!".
E se bem o disse melhor o fez, com uns taipais das obras do Centro de Dia para morcegos se fez um portão praticamente intransponível. As janelas ficaram fortes, os trincos cumpriam os respectivos papéis, tendo até sido testadas pelos amigos e conhecidos. A casa parecia defendida.
"Não abres a porta a ninguém! Só eu e a tua mãe temos a chave, por isso muito cuidado!". Pai é pai, é dos livros que diga estas e outras coisas similares a que é suposto os filhos não ligarem nenhuma, sempre assim foi, sempre assim será. Amen. Mas Quincas era bom filho e durante três meses não abriu a porta a ninguém, fossem demonstradores de aspiradores ou delegados de vendas da Planeta Agostini. Mas não era fácil passarem-se assim quase nove horas por cada dia. Depressa Quincas passou a pente fino a biblioteca de casa, revistas, livros, ordens de serviço do trabalho do pai, pagelas das Testemunhas de Jeová e até as Páginas Verdes, a lista telefónica oficial da floresta. Um tédio! Um tédio que a juntar à falta de luz natural fez com que Quincas entrasse em natural depressão, que isto dos nervos é como a reciclagem, toca a todos...
"O rapaz anda amarelo, Papá... Temos de o levar ao médico, receio bem que a prisão a que o votámos esteja a ser prejudicial". E era um facto, Quincas via o seu aspecto degradar-se mês após mês. Más línguas depressa começaram a burilar a trama, que Quincas passava tempo demais deitado, o que é bom, mas que as naturais pulsões de láparo o levavam a práticas menos recomendáveis, quem sabe se um severo caso de abuso de alguns canais televisivos e não estamos a falar do canal Playboy ou similar, mas sim da RTP1 e da TVI cujo abuso como é milenarmente sabido, dá cabo dos nervos a qualquer um.
E Quincas foi levado ao médico pelos pais, uma clínica privada propriedade de um mocho, que fora já professor universitário, mas sabeis como são atractivas as carreiras privadas face ao serviço público e se somarem a isso ao facto do mocho ter uma amante riquíssima, uma gralha que passou metade da sua vida a surripiar coisas que brilham, estarão dois terços da história explicados. Feitas análises e exames, uns mais necessários que outros, é certo, que isto dos caminhos da medicina são como os da virtude, isto é difíceis e pedregosos, depressa se chegará a conclusões, mais depressa do que o narrador conseguiria reduzir todo este parágrafo à sua mais simples expressão, isto é "O resultado dos exames chegou em oito dias"...
"O rapaz não pode ficar fechado em casa" disse imperialmente a toupeira médica, enquanto equilibrava com as pequenas unhas os óculos na ponta do nariz (então não era um mocho? Não não era, o mocho era dono da clínica, não significa que trabalhasse...). "A Internet e a TV por cabo estão a arruinar-lhe a saúde. Precisa de apanhar ar e sol, precisa de sair e roer coisas por aí, não se pode contrariar a natureza das coisas." Dito isto e passado o recibo (verde), Papá Coelho resmungando que nem um café fora servido enquanto esperavam pelos TAC's, pagou e não bufou, pelo menos ali que dava um terrível mau aspecto.
E lá voltamos à inevitabilidade das coisas, o "Temos de fazer alguma coisa..." dito com as mãos nas ancas, as patas, corrige o narrador. "Não podemos deixá-lo sair, mas ele precisa, meu querido filho, é para isto que uma mãe está guardada, é só agruras, temos de fazer alguma coisa..."
Papá Coelho aconselhou-se com todo o bicho careta e cada sugestão era mais parva que a anterior. Desde construir um parque fechado na copa do carvalho, a mandá-lo estudar para pastagens mais verdes e sem presenças indesejadas, de tudo Papá Coelho ouviu. O pároco da floresta promoveu algumas sessões de reflexão comunitária de que muito pouco adiantaram, bastante por culpa das beatas galinhas que cacarejavam o tempo todo e que impediam até os animais de ouvir os seus próprios pensamentos. Estará decerto o leitor a perguntar-se de que espécie animal era este pároco, que coisa tão estranha, uma fábula com animais sacerdotes, é nisto que dá a liberdade de narração. Pois também o narrador está um bocado aflito com este personagem. aqui metido um pouco a martelo, só se consegue lembrar da simpática figura de um pinguim, cuja morfologia e penugem assentam como uma luva à eminência da função. Mais depressa como sabeis é apanhado um mentiroso que um mocho, mas ficará o pinguim com seu cabeção branco. Apesar de ser absolutamente improvável que um pinguim figurasse entre a florestal população. Socorre-se o narrador de um imaginário édito do bispo, que mandou vir um pinguim da Diocese do Alasca, que já não fica o narrador tão à rasca e resolve-se na mesma penada a crise de vocações sacerdotais.
Sendo uma criatura de Deus, com religiosas funções, era o pinguim bastas vezes dado à contemplação e às sardinhas, sendo que as comprava no LIDL mais proximo, embaladas já em tomatada e a pouco menos de um Euro cada latinha, que é muito mais prático do que arriscar uma queda nas rochas ou um mergulho em águas gélidas, coisa para a qual é preciso ter tomates... E é próprio dos operários divinos lembrarem-se de coisas que nem ao Diabo lembraria como acompanhar sardinhas em tomate com triângulos de queijo da vaquinha, coisa universal que rapidamente foi confirmada.
"Irmão Coelho, só vejo uma saída para este delicado problema. Tens de ir falar com o Coelhinho Gestor".
Nunca Papá Coelho tinha pensado em tal coisa e não fosse ter as patas ocupadas com a pasta do serviço, teria esbofeteado as próprias orelhas. "Mas claro! Que coisa! É isso mesmo!". A figura do Coelhinho Gestor era absolutamente omnipresente na floresta. Eleito por voto secreto em eleições livres e democráticas com baixíssima taxa de abstenção, cabia a tão ilustre figura a manutenção da ordem legislativa em todo o bosque. O Coelhinho Gestor decretava e os outros cumpriam, fossem questões de comprimento máximo de chifres de animais, à normalização da sinalização de caminhos venatórios, era o centro nevrálgico da lei e da ordem. Poucas coisas aparentemente insolúveis se deixavam de resolver depois da sua intervenção, fossem desavenças de esquilos com bolotas caídas de ninhos, ou a elaboração de mapas de despesas de condomínio de formigueiros, coisa que compreenderão não se resolvem sem complexos mapas de Excel ou dois berros bem dados nas concorridas assembleias gerais.
O problema de Papá Coelho passava por conseguir uma audiência na apertada agenda do Coelhinho Gestor, coisa que mereceria o maior empenho e só foi alcançado o desiderato (isto no Scrabble era uma mina, só vos digo...), depois de uma valente cunha de um primo que conhecia um tipo que por sua vez conhecia uma coelha russa que actuava no varão (dizem as más línguas que não era só num. mas toda a gente sabe que são as más línguas que arruinam o negócio do sexo...) de um Strip Club do lado de lá das colinas, já quase no final do souto de castanheiros que por sua vez dava acesso à aldeia mais próxima. Data marcada, um molho de cenouras para pagar o favor da coelha russa despachado por estafeta, Papá Coelho chegou ao escritório do Coelhinho Gestor à hora aprazada.
"Estes tipos tratam-se bem..." resmungou Papá Coelho ao sentar-se nos confortáveis sofás da sala de espera. Aqui e ali ia deitando o olho às pernas da secretária do Coelhinho Gestor, uma espectacular coelha ruiva que parecia atarefada por detrás de um balcão elegante. Parecia apenas, todos sabemos que 90% das pessoas atarefadas por detrás de um monitor não fazem mais do que jogar Solitaire... "Deve andar a roê-la, oh a mim não me enganas, já cá ando há muito tempo...". Estava Papá Coelho nestas apreciações estéticas, quando a coelha, rasgando um sorriso de orelha a orelha (um sorriso imenso, portanto, para os mais distraídos...) lhe anunciou que poderia entrar.
"Muito obrigado, muito obrigado" agradeceu em tom subserviente enquanto lhe observava a esguia figura. O escritório do Coelhinho Gestor não me desmerecia de todo o preço dos pareceres por ele emitidos, que era voz corrente para os coelhos custar o pompom e oito tostões. Fofas alcatifas, madeiras ricas, cadeirais imponentes, que deixavam o consulente semi intimidado. No topo da ampla secretária, a figura do Coelhinho Gestor, tez escura, pelo lustroso, adornado por vestuário condizente com o degrau ocupado na escala social.
"Ora, diga lá então Sr.Coelho, que tempo são cenouras" gracejou o Coelhinho Gestor mirando Papá Coelho de soslaio, enquanto este nervosamente enrolava a aba do chapéu nas nervosas patas. E Papá Coelho contou a sua história, ou melhor o dilema de Quincas e do lobo da floresta, pormenores que o leitor já conhece e trabalhasse o narrador à linha teria de ler outra vez, espero que tomem em consideração esta nobre lembrança quando chegarem ao final de tão trágica história...
"Parece-me deveras simples de resolver" exteriorizou o Coelhinho Gestor enquanto premia algumas teclas no seu portátil. Um ruído na impressora, quase um bichanar (era uma laser, nada de barulhos parvos de uma ink jet) e uma folha tintada de texto assomou na fresta da máquina. (Fosse a impressora do narrador e tinha de a ir apanhar ao meio da sala, desvantagens de não se ser um narrador gestor...). Envelopada a folha, "passe muito bem, e já que falamos de passar, não se esqueça do chequezinho do parecer, quando sair a miúda trata dos recibos e das facturas".
Guardados os documentos, posto a salvo o envelope e cumpridas as formalidades, Papá Coelho rumou a casa onde a família ansiosa aguardava pouco serenamente. "E então? E então? Que disse o Coelhinho Gestor?". Papá Coelho recuperou o envelope, desdobrou a folha e começou lendo em voz alta:
"Posto perante os factos, determino que a Quincas seja dada total liberdade de passeio pelos bosques e clareiras, não devendo o mesmo ser alvo de qualquer reclusão domiciliária e não temendo nenhuma ameaça física ou psicológica, pode (e deve) gozar de total liberdade de movimentos na floresta. Sendo que, no caso do aparecimento do lobo, deve de imediato Quincas transformar-se em árvore e com esse simples gesto, passar despercebido e camuflado na paisagem".
"Pronto, parece simples de cumprir, a partir de agora Quincas, já podes passear e brincar por aí e em caso de aflição, basta que te transformes em árvore".
"Olha lá, Papá Coelho, mas que grande disparate! Foste tu pagar uma fortuna para que o Coelhinho Gestor decidir "isso"? Papá Coelho sentou-se, caindo na realidade da dificuldade técnica do parecer. "Pois, de facto não sei como é que o miúdo se transforma em árvore... Mas posso sempre lá ir perguntar, com certeza que não me cobrará de novo..."
E se bem o disse melhor o fez, rumou de novo ao Coelhinho Gestor e invocando uma dificuldade de entendimento encontrou-se de novo face a face com tão douta figura.
"É que há uma coisa, senhor Coelhinho Gestor, que não entendemos, minha mulher e eu, eu e minha mulher, afinal a ordem dos factores aqui é arbitrária, é que não sabemos mesmo como é que Quincas se transforma em árvore. É que pagámos uma fortuna pelo parecer e isto parece complicado de cumprir..."
O Coelhinho Gestor recostou-se no cadeirão e sorriu. Consultou no monitor a decisão, apenas para se inteirar dos factos, pois já tinha aviado 12 pareceres depois daquele e um homem não se pode lembrar de tudo, isto se descontarmos o Nuno Rogeiro que não precisa de portátil.
"Oh meu caro amigo. Eu sou o Coelhinho Gestor. Tomo macro decisões. Se o mandei transformar em árvore o puto tranforma-se em árvore e mais nada. Se você não sabe como fazer, isso já é problema que não me diz respeito, que nós os Gestores só tratamos das grandes linhas!"
Nessa floresta, a nossa floresta para efeitos desta história, viviam inúmeros animais. Veados, pássaros de toda a espécie, javalis, toupeiras e todos aqueles de que agora não me lembro e que sendo bastos os que ficam por nomear, enfadariam por decerto o estimado leitor.
Só muito de quando em vez esta harmonia era quebrada, quiçá por algum caçador que de arma em riste entrasse no perímetro florestal, ou por alguma família que resolvesse armar um picnic numa das muitas agradáveis clareiras. Mas era uma floresta muito calma. Qualquer das excepções de que falei atrás, aconteciam apenas por regra à Quinta-Feira ou ao fim de semana e os restantes dias eram absolutamente pacíficos.
Uma simpática família de coelhos, figura central desta história como mais adiante se verá, vivia a sua feliz existência no tronco oco de um carvalho, sendo que compete ao narrador nesta fase da história, certificar-se inequivocamente de que todas as teclas estão funcionais, principalmente o "v", sob o qual tinham escavado as suas luras, que no total era um autêntico T4, com sala, cozinha, casa de banho, dispensa, cenouródromo (que é assim uma espécie de Home Cinema para coelhos) e quartos em profusão.
O problema habitacional não se punha, bastava Mamã Coelha fazer cara feia e bater as patas traseiras, para não falar em greves de sexo (e os coelhos são criaturas bastante peculiares nesse capítulo) para que Papá Coelho tivesse de largar as folhas do "Floresta Times" ou interromper um episódio do "Notícias da Caça" (Papá Coelho apreciava bastante o género de filmes de terror...) e ir cavar mais uma divisão. Parece simples, é simples e garantia-lhe o sossego (e o sexo!) por mais quinze dias.
Pois foi precisamente numa dessas pausas entre pressões psicológicas que Quincas foi concebido. Não estranharemos o nome, afinal Quincas é nome de coelho célebre, segundo Papá Coelho nem terá sido dos mais difíceis de escolher com a excepção talvez do primogénito, nascido por alturas do primeiro filho do Duque de Bragança, ao qual Mamã Coelha resolveu clamar de sua graça Joel Manuel Gabriel Rafael Ezequiel Pimentel Destroce Destroce Que Já Bateu, mas isto são outros contos que nasceu perfeito de orelhas e com óptimos dentes que é o que interessa ao comum dos florestais habitantes e que hoje, já crescido e casado é consultor de Tecnologias de Informação em Nova York por causa de uma infelicidade com um cesto de almoço de uma família de emigrantes nos Estados Unidos.
Ainda hoje Papá Coelho se vangloria "Dou quinze enquanto Mamã Coelho diz o nome do ganapo", mas isto claro, em surdina e entre amigos machos, que Mamã Coelho lhe não permitiria tais liberdades assim às escâncaras. E estávamos nisto, a vida corria doce, Mamã Coelho grávida mas coelha trabalhadora, vigilante num Centro Comercial, com horário fixo graças a Deus e ao sindicato, casa trabalho, trabalho casa, uma rápida surtida às compras, uma ida ao cabeleireiro de quando em vez para compor as orelhas, Papá Coelho, encarregado da construção civil, ocupado com a edificação de um Centro de Dia para morcegos que coitados toda a gente sabe que não têm onde cair mortos quando o sol rompe a copa das árvores da floresta, apenas às Quartas-Feiras interrompia o rame rame para uma partida de cartas com os amigos, paradas baixas, 3 cenouras por jogo, é apenas um jogo entre amigos.
Bem, mas dizia eu a vida corria doce e sem sobressaltos, agora há que fazer avançar o tempo, nestas histórias nem é difícil adiantar ou atrasar o relógio temporal, já se gastou um ror de linhas só para dizer o que toda a gente sabe, era uma família de coelhos e tal. Nestas histórias como nos filmes, basta meter uma transição iPhoto tipo Droplet, um pequeno clip com sininhos e pimbas um tipo atira com dez anos para a frente, número exageradíssimo para coelhos, convenhamos que cinco bastavam, vamos lá, imaginem que o texto treme e se desfoca, ouvem-se os inefáveis sininhos e avançamos uma carrada de anos.
O cenário não mudou muito. Papá Coelho no sofá, desfolhando o jornal enquanto a TV debita em volume médio a narração de um jogo de futebol, os locutores dizendo que Pinilla ainda se esforça bem aos cinquenta anos apesar de só marcar de dez em dez, Papá Coelho está a cinco anos da reforma, merecida segundo o próprio, queira Deus e a Comissão de Inquérito dos Assuntos Florestais se não intrometa por causa de uns fumos de corrupção que ultimamente têm grassado na empresa, que onde há fumo há fogo e a coisa pode tornar-se dramática se não nos tivermos esquecido de que estamos numa floresta.
Papá Coelho baixou o jornal por uns instantes e está nesta altura a observar Mamã Coelha debruçada sobre a máquina de lavar louça, pompom proeminente, capaz de entusiasmar o velhote que ainda se sente ali para as curvas, as da vida e estas. Deixa escapar um valente assobio galante (imagine-o leitor que ao narrador ninguém paga para que faça milagres linguísticos), Mamã Coelha soergue-se, censura-o com o olhar e deixa escapar "Vê lá se te cai um dentinho!" Isso é que não, isso é que não, para um coelho é pior que uma disfunção eréctil, bem não exageremos, mas que a escolha não é fácil, lá isso não é.
"Olha que o miúdo está a ver!" O miúdo é, adivinharam, Quincas. Cresceu, está um coelho juvenil saudável, apenas o trivial sarampo e duas crises de mixomatose, tomara muitos, ah isso tomara!. "E temos de falar por causa dele, vamos ter um problema, agora que se lhe acabou o coelhário e falta um ano para ir para a Escola, não sei bem o que vamos fazer..." Ora, cria-se como os outros, fica em casa durante o dia, espaço não falta, não ficará enfezado porque pode correr por aí à vontade!".
Papá Coelho não entendia a preocupação e mais apreensivo ficou quando lobrigou uma lágrima nos bigodes de Mamã Coelha."O que é que se passa, mulher?" Que sim mais que também (era um velho anseio do narrador introduzir no texto uma expressão portuguesa tão parva quanto esta, foi agora, não ficou mal de todo), e tu homem para que lês tanto jornal, não sabes o que por aí anda nesses bosques, todos os dias se ouve falar de desgraças, raptos, violações, tu vê lá que ainda há um mês um Porco Espinho foi violado à luz do dia, era um bando, um gang. "Um gang?" Sim, um gang de cágados. Coitadinho, borrou-se de medo. "Queres dizer que ficou sem o assento ou sem o acento?"
Francamente, só pensas nisso, ainda só apanharam dois, um carro patrulha com duas lesmas ao volante deu com eles mas ainda não conseguiram deitar a mão a todos, talvez daqui por um mês, mais coisa menos coisa. Mamã Coelha. emocionada, limpou mais três lágrimas que faziam dos seus bigodes uma espécie de candeeiro Made in China à medida que lhe desciam pelas capilosidades e foi com o focinho no avental que a custo escondeu um soluço indisfarçável.
"Então Mamã, que é isso?" Mas há mais, Papá, há mais! Diz-se que anda por aqui um lobo! Troquemos neste mesmo instante a turma dos sininhos do "flashback", coloquemos em cena uns trombones de varas para um ambiente de perfeito pânico (não cabem todos, o narrador lamenta-se, não há fosso de orquestra nesta história, que foi desenhada pelo mesmo arquitecto da Casa da Música...) e temos o cenário completo, Papá Coelho com todos os pêlos eriçados, dentes rilhando, e ar angustiado. "Oh pai, parece que viste o déficit, olha para as orelhas dele que até tremem!".
Mal podia Quincas imaginar na sua juventude e falta de experiência das coisas da vida, a paterna preocupação. Um lobo era a derradeira preocupação dos animais felizes, e se se diz derradeira é porque o era mesmo, muitos dos infelizes que foram apanhados não conseguiram fazer mais nada, alguns ainda nem tinham conseguido gritar "LOB..." e eram, num ápice deglutidos, sem dó nem ketchup.
"Temos de fazer alguma coisa!" disse Papá Coelho. Ora, sabemos de antemão que todas as pessoas que não sabem o que fazer nas suas vidas perante a inevitabilidade da desgraça ou ameaça de holocausto, dizem a mesma coisa. E para parecerem decididas e convincentes, colocam por sua vez as mãos na cintura e repetem com ar sereno, martelando as reticências finais enquanto pensam naquilo que efectivamente vão tentar fazer. "Temos de fazer alguma coisa...".
Papá Coelho alinhavou mentalmente o óbvio (coisa que Ronald Koeman, outro simpático láparo de outras fábulas das que metem águias e dragões não conseguiu ainda fazer e já lá vão três jornadas...). "Vamos reforçar a defesa! Trago lá da obra umas tábuas e reforça-se a porta. Metem-se trincos nas janelas da cave e esta lura ficará forte e resistente como nunca se viu". "Então, mas o moço vai ficar trancado em casa durante um ano inteiro?", perguntou Mamã Coelho. "Não há outro remédio! Não podemos arriscar, isto com lobos à solta na floresta, não se pode facilitar!".
E se bem o disse melhor o fez, com uns taipais das obras do Centro de Dia para morcegos se fez um portão praticamente intransponível. As janelas ficaram fortes, os trincos cumpriam os respectivos papéis, tendo até sido testadas pelos amigos e conhecidos. A casa parecia defendida.
"Não abres a porta a ninguém! Só eu e a tua mãe temos a chave, por isso muito cuidado!". Pai é pai, é dos livros que diga estas e outras coisas similares a que é suposto os filhos não ligarem nenhuma, sempre assim foi, sempre assim será. Amen. Mas Quincas era bom filho e durante três meses não abriu a porta a ninguém, fossem demonstradores de aspiradores ou delegados de vendas da Planeta Agostini. Mas não era fácil passarem-se assim quase nove horas por cada dia. Depressa Quincas passou a pente fino a biblioteca de casa, revistas, livros, ordens de serviço do trabalho do pai, pagelas das Testemunhas de Jeová e até as Páginas Verdes, a lista telefónica oficial da floresta. Um tédio! Um tédio que a juntar à falta de luz natural fez com que Quincas entrasse em natural depressão, que isto dos nervos é como a reciclagem, toca a todos...
"O rapaz anda amarelo, Papá... Temos de o levar ao médico, receio bem que a prisão a que o votámos esteja a ser prejudicial". E era um facto, Quincas via o seu aspecto degradar-se mês após mês. Más línguas depressa começaram a burilar a trama, que Quincas passava tempo demais deitado, o que é bom, mas que as naturais pulsões de láparo o levavam a práticas menos recomendáveis, quem sabe se um severo caso de abuso de alguns canais televisivos e não estamos a falar do canal Playboy ou similar, mas sim da RTP1 e da TVI cujo abuso como é milenarmente sabido, dá cabo dos nervos a qualquer um.
E Quincas foi levado ao médico pelos pais, uma clínica privada propriedade de um mocho, que fora já professor universitário, mas sabeis como são atractivas as carreiras privadas face ao serviço público e se somarem a isso ao facto do mocho ter uma amante riquíssima, uma gralha que passou metade da sua vida a surripiar coisas que brilham, estarão dois terços da história explicados. Feitas análises e exames, uns mais necessários que outros, é certo, que isto dos caminhos da medicina são como os da virtude, isto é difíceis e pedregosos, depressa se chegará a conclusões, mais depressa do que o narrador conseguiria reduzir todo este parágrafo à sua mais simples expressão, isto é "O resultado dos exames chegou em oito dias"...
"O rapaz não pode ficar fechado em casa" disse imperialmente a toupeira médica, enquanto equilibrava com as pequenas unhas os óculos na ponta do nariz (então não era um mocho? Não não era, o mocho era dono da clínica, não significa que trabalhasse...). "A Internet e a TV por cabo estão a arruinar-lhe a saúde. Precisa de apanhar ar e sol, precisa de sair e roer coisas por aí, não se pode contrariar a natureza das coisas." Dito isto e passado o recibo (verde), Papá Coelho resmungando que nem um café fora servido enquanto esperavam pelos TAC's, pagou e não bufou, pelo menos ali que dava um terrível mau aspecto.
E lá voltamos à inevitabilidade das coisas, o "Temos de fazer alguma coisa..." dito com as mãos nas ancas, as patas, corrige o narrador. "Não podemos deixá-lo sair, mas ele precisa, meu querido filho, é para isto que uma mãe está guardada, é só agruras, temos de fazer alguma coisa..."
Papá Coelho aconselhou-se com todo o bicho careta e cada sugestão era mais parva que a anterior. Desde construir um parque fechado na copa do carvalho, a mandá-lo estudar para pastagens mais verdes e sem presenças indesejadas, de tudo Papá Coelho ouviu. O pároco da floresta promoveu algumas sessões de reflexão comunitária de que muito pouco adiantaram, bastante por culpa das beatas galinhas que cacarejavam o tempo todo e que impediam até os animais de ouvir os seus próprios pensamentos. Estará decerto o leitor a perguntar-se de que espécie animal era este pároco, que coisa tão estranha, uma fábula com animais sacerdotes, é nisto que dá a liberdade de narração. Pois também o narrador está um bocado aflito com este personagem. aqui metido um pouco a martelo, só se consegue lembrar da simpática figura de um pinguim, cuja morfologia e penugem assentam como uma luva à eminência da função. Mais depressa como sabeis é apanhado um mentiroso que um mocho, mas ficará o pinguim com seu cabeção branco. Apesar de ser absolutamente improvável que um pinguim figurasse entre a florestal população. Socorre-se o narrador de um imaginário édito do bispo, que mandou vir um pinguim da Diocese do Alasca, que já não fica o narrador tão à rasca e resolve-se na mesma penada a crise de vocações sacerdotais.
Sendo uma criatura de Deus, com religiosas funções, era o pinguim bastas vezes dado à contemplação e às sardinhas, sendo que as comprava no LIDL mais proximo, embaladas já em tomatada e a pouco menos de um Euro cada latinha, que é muito mais prático do que arriscar uma queda nas rochas ou um mergulho em águas gélidas, coisa para a qual é preciso ter tomates... E é próprio dos operários divinos lembrarem-se de coisas que nem ao Diabo lembraria como acompanhar sardinhas em tomate com triângulos de queijo da vaquinha, coisa universal que rapidamente foi confirmada.
"Irmão Coelho, só vejo uma saída para este delicado problema. Tens de ir falar com o Coelhinho Gestor".
Nunca Papá Coelho tinha pensado em tal coisa e não fosse ter as patas ocupadas com a pasta do serviço, teria esbofeteado as próprias orelhas. "Mas claro! Que coisa! É isso mesmo!". A figura do Coelhinho Gestor era absolutamente omnipresente na floresta. Eleito por voto secreto em eleições livres e democráticas com baixíssima taxa de abstenção, cabia a tão ilustre figura a manutenção da ordem legislativa em todo o bosque. O Coelhinho Gestor decretava e os outros cumpriam, fossem questões de comprimento máximo de chifres de animais, à normalização da sinalização de caminhos venatórios, era o centro nevrálgico da lei e da ordem. Poucas coisas aparentemente insolúveis se deixavam de resolver depois da sua intervenção, fossem desavenças de esquilos com bolotas caídas de ninhos, ou a elaboração de mapas de despesas de condomínio de formigueiros, coisa que compreenderão não se resolvem sem complexos mapas de Excel ou dois berros bem dados nas concorridas assembleias gerais.
O problema de Papá Coelho passava por conseguir uma audiência na apertada agenda do Coelhinho Gestor, coisa que mereceria o maior empenho e só foi alcançado o desiderato (isto no Scrabble era uma mina, só vos digo...), depois de uma valente cunha de um primo que conhecia um tipo que por sua vez conhecia uma coelha russa que actuava no varão (dizem as más línguas que não era só num. mas toda a gente sabe que são as más línguas que arruinam o negócio do sexo...) de um Strip Club do lado de lá das colinas, já quase no final do souto de castanheiros que por sua vez dava acesso à aldeia mais próxima. Data marcada, um molho de cenouras para pagar o favor da coelha russa despachado por estafeta, Papá Coelho chegou ao escritório do Coelhinho Gestor à hora aprazada.
"Estes tipos tratam-se bem..." resmungou Papá Coelho ao sentar-se nos confortáveis sofás da sala de espera. Aqui e ali ia deitando o olho às pernas da secretária do Coelhinho Gestor, uma espectacular coelha ruiva que parecia atarefada por detrás de um balcão elegante. Parecia apenas, todos sabemos que 90% das pessoas atarefadas por detrás de um monitor não fazem mais do que jogar Solitaire... "Deve andar a roê-la, oh a mim não me enganas, já cá ando há muito tempo...". Estava Papá Coelho nestas apreciações estéticas, quando a coelha, rasgando um sorriso de orelha a orelha (um sorriso imenso, portanto, para os mais distraídos...) lhe anunciou que poderia entrar.
"Muito obrigado, muito obrigado" agradeceu em tom subserviente enquanto lhe observava a esguia figura. O escritório do Coelhinho Gestor não me desmerecia de todo o preço dos pareceres por ele emitidos, que era voz corrente para os coelhos custar o pompom e oito tostões. Fofas alcatifas, madeiras ricas, cadeirais imponentes, que deixavam o consulente semi intimidado. No topo da ampla secretária, a figura do Coelhinho Gestor, tez escura, pelo lustroso, adornado por vestuário condizente com o degrau ocupado na escala social.
"Ora, diga lá então Sr.Coelho, que tempo são cenouras" gracejou o Coelhinho Gestor mirando Papá Coelho de soslaio, enquanto este nervosamente enrolava a aba do chapéu nas nervosas patas. E Papá Coelho contou a sua história, ou melhor o dilema de Quincas e do lobo da floresta, pormenores que o leitor já conhece e trabalhasse o narrador à linha teria de ler outra vez, espero que tomem em consideração esta nobre lembrança quando chegarem ao final de tão trágica história...
"Parece-me deveras simples de resolver" exteriorizou o Coelhinho Gestor enquanto premia algumas teclas no seu portátil. Um ruído na impressora, quase um bichanar (era uma laser, nada de barulhos parvos de uma ink jet) e uma folha tintada de texto assomou na fresta da máquina. (Fosse a impressora do narrador e tinha de a ir apanhar ao meio da sala, desvantagens de não se ser um narrador gestor...). Envelopada a folha, "passe muito bem, e já que falamos de passar, não se esqueça do chequezinho do parecer, quando sair a miúda trata dos recibos e das facturas".
Guardados os documentos, posto a salvo o envelope e cumpridas as formalidades, Papá Coelho rumou a casa onde a família ansiosa aguardava pouco serenamente. "E então? E então? Que disse o Coelhinho Gestor?". Papá Coelho recuperou o envelope, desdobrou a folha e começou lendo em voz alta:
"Posto perante os factos, determino que a Quincas seja dada total liberdade de passeio pelos bosques e clareiras, não devendo o mesmo ser alvo de qualquer reclusão domiciliária e não temendo nenhuma ameaça física ou psicológica, pode (e deve) gozar de total liberdade de movimentos na floresta. Sendo que, no caso do aparecimento do lobo, deve de imediato Quincas transformar-se em árvore e com esse simples gesto, passar despercebido e camuflado na paisagem".
"Pronto, parece simples de cumprir, a partir de agora Quincas, já podes passear e brincar por aí e em caso de aflição, basta que te transformes em árvore".
"Olha lá, Papá Coelho, mas que grande disparate! Foste tu pagar uma fortuna para que o Coelhinho Gestor decidir "isso"? Papá Coelho sentou-se, caindo na realidade da dificuldade técnica do parecer. "Pois, de facto não sei como é que o miúdo se transforma em árvore... Mas posso sempre lá ir perguntar, com certeza que não me cobrará de novo..."
E se bem o disse melhor o fez, rumou de novo ao Coelhinho Gestor e invocando uma dificuldade de entendimento encontrou-se de novo face a face com tão douta figura.
"É que há uma coisa, senhor Coelhinho Gestor, que não entendemos, minha mulher e eu, eu e minha mulher, afinal a ordem dos factores aqui é arbitrária, é que não sabemos mesmo como é que Quincas se transforma em árvore. É que pagámos uma fortuna pelo parecer e isto parece complicado de cumprir..."
O Coelhinho Gestor recostou-se no cadeirão e sorriu. Consultou no monitor a decisão, apenas para se inteirar dos factos, pois já tinha aviado 12 pareceres depois daquele e um homem não se pode lembrar de tudo, isto se descontarmos o Nuno Rogeiro que não precisa de portátil.
"Oh meu caro amigo. Eu sou o Coelhinho Gestor. Tomo macro decisões. Se o mandei transformar em árvore o puto tranforma-se em árvore e mais nada. Se você não sabe como fazer, isso já é problema que não me diz respeito, que nós os Gestores só tratamos das grandes linhas!"
6 comentários:
Depois de longa espera… a história vê a luz do dia! Muito obrigado.
Valeu a pena esperar, está empolgante, cómica, subtil, extraordinária. Para quando o filme?
Pois...
O problema está que já passou tanto tempo que já não sei a que propósito vinha esta história.
E sinceramente não vou procurar no arquivo das ML....
:)
Divinal... absolutamente divinal.
- At last!... O famoso "Oráculo" Coelho Gestor das nossas "Matrix"...
- Ele indica o caminho, mas somos nós que o temos de percorrer.
- Será "Neo" Quincas capaz de percorrer o seu?
- pílula vermelha... transforma-mo-nos naquilo que quisermos!... 8-)
- pílula azul... continuamos a viver na ignorância!... 8-(
Baseado numa história verídica?
Se o Quincas é encontrado pelo Júnior... Oo oba oba!!
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