05 setembro 2005

O que sabes tu da voz do sangue?

Já aqui falei de T. e da sua peculiar visão do mundo aos oitenta e muitos anos. T. degrada-se, mental e fisicamente e leva-nos a desejar que os corpos e as mentes se nunca destruam ou percam qualidades. Sente-se isso continuamente na raiva da voz, nos trejeitos de olhar mas muito em particular naquilo que fica por dizer, seja vergonha ou mero decoro. "Tenho de sair de casa, eles querem ir de férias e eu tenho de sair de casa...". "Não que eu queira ir com eles, que não quero, eu queria ficar sozinha, com os meus pensamentos, com as minhas coisinhas, aqui no meu cantinho que infelizmente nunca foi meu, mas ela não me deixa...". Combinamos que a irei buscar. T. não me é nada, não partilho com ela nenhum gene, mas deu provas no decorrer da sua longa vida de que não é o ADN que impõe regras nestas questões. Acto falhado, T. telefona-me a minutos da hora combinada balbuciando uma negativa, que não, que já não sai e não me apetece inquirir das razões. Todos nós devíamos ter direito a não responder a questões que não chegam a ser colocadas. Apenas algumas horas volvidas, um novo telefonema. "Podes vir hoje, podes?". Poderei. Mas há algo que está quebrado nestes silêncios cúmplices. As malditas perguntas sem resposta, os silêncios que marcam os minutos e o assustador barulho dos momentos em que não pronunciamos banalidades. Quer mesmo vir comigo? "Que sim, quero", assim tão seco como a paisagem de pinheiros à míngua da água que não chove. Há alguma coisa que me queira dizer? Ou melhor, que não me queira dizer? "Eu tenho de sair de casa, faz-me bem sair de casa, volto com outro espírito. Até ao próximo Verão, até nos aborrecermos outra vez...". Olho de lado, um olhar de incompreensão. Mas se isso está assim, porque é que insiste em voltar?. Só se ouve o vento a soprar pelas frinchas dos vidros entreabertos. Desvio os olhos da estrada para lhe mirar a silhueta magra, punho fechado à volta da alça da mala. "O que sabes tu da voz do sangue?".

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