02 janeiro 2006

Electric Dreams

O pedido chegou-me num Sábado depois de almoço. Começou por não ser um pedido mas um lamento, uma queixa, coisas de velhos e das suas dificuldades. Disse aos companheiros de mesa que acordava de noite com tremuras, sentindo um formigueiro pelo corpo como se foram cãimbras a tolher-lhe os movimentos. De galhofa disseram-lhe alguns dos presentes que abusasse menos do bagaço, que rápidas melhoras notaria. Coisas de velhos cúmplices num entretém de tempo vagaroso preenchido com estas picardias. São velhos secos, enrijados por anos de sal a sol (não é gralha, foram na sua maioria marnotos e carregadores). Já estou de abalada quando me pede um favor envergonhado. Precisa de mudar uma lâmpada no quarto e já não se sente em condições de subir a um banco ou galgar os degraus de uma escada. "Quando subir a um banco levarei uma corda na mão...". Acompanho-o no coxear vagaroso e pede-me desculpa pela humildade da casa, desleixada e triste, que a mulher partiu "faz pelo S. Pedro quatro anos ou coisa". Trepo ao banco, desenrosco do bocal ressequido como o dono a lâmpada fundida e apoio-me nos ferros (forjados como os de quem nela se deita) da cabeceira da cama. É então que sinto a descarga, os dedos a colarem-se ao metal, as articulações a tremer, o gosto amargo na boca. É um tremendo choque eléctrico e não percebo de onde vem, afinal isto e apenas uma cama... Desligo o quadro e inspecciono ao meu redor enquanto disfarçadamente esfrego os nós dos dedos mais combalidos. Entendo rapidamente das razões do choque. Do alto, sobre a parede do topo da cama, pende uma pêra de passagem com dois fios completamente descarnados que tocam ao de leve na estrutura do leito, entre a mesa de cabeceira pejada de medicamentos e a almofada. Peço-lhe que não toque em nada, que voltarei pouco depois, munido de cabos e ferramentas para remediar o perigo. Corto, desaparafuso, volto a aparafusar. Na azáfama fiz tombar duas lâminas de comprimidos que recupero de seguida, pedindo desculpa pelo desajeito. "Esses tomo-os por causa desta coisa das cãimbras e tremuras quando me vou deitar, são os pequeninos brancos, o doutor diz que me ajudam a dormir, mas não fazem nada...". Vão fazer, juro-lhe que a partir de hoje vão fazer...

2 comentários:

Anónimo disse...

Graças a esta história ouvi um sermão do caraças da sra. Arquitecta, minha chefe. Tudo porque, com as gargalhadas não conseguia ouvir o senhor do outro lado do telefone. Obrigado.

Anónimo disse...

Ele disse mesmo que só subiria ali para pendurar uma corda?? Tadinho, tão perto e tão longe... :)