14 fevereiro 2006

A luz e o escuro

"Eu, que depois de ir à casa de banho, dormia que nem um santinho toda a noite, agora não, acordo quatro e cinco vezes, coberto de suor, as mãos geladas, tem sido um inferno...".

Mas já foste ao médico, pergunta V. ainda de sobrolho carregado pela discussão da luz e do escuro. "Não, não fui, creio bem que não valha a pena..."

Como assim, não vale a pena, pergunto eu, tentando conter o riso que ainda me sufocava da conversa anterior. "Tenho exactamente quarenta e cinco dias de vida!".

Ai sim, pergunta V. de olhos arregalados. Isso quer dizer que já cá não estás pela Páscoa e já não pagas o jantar? "Não, não devo estar, é como te disse, os últimos dias de Março vão ser um inferno...". Cheguei a pensar que estava perante uma piada colectiva, mas começo a ter certezas em vez de dúvidas, alguém está profundamente convencido de que vai morrer. "Como é que eu posso dormir se a cama me arde?".

Espera lá, vai lá mais devagar, explica-me lá o que raio se passa. "Foi uma cigana, pá, uma cigana maldita que me disse...". "Eu, há umas semanas ia pela rua, ia almoçar, uma cigana pediu-me ajuda para colocar um caixote grande dentro de uma carrinha. Ajudei-a, ela pediu-me a mão para me ler a sina. Havias de ver a cara dela quando me pegou na mão, disse-me logo que eu só tinha quarenta e cinco dias de vida...". Ah, bom, está explicado, isso foi quando? "Há mais ou menos quinze dias...". V.. não faz por menos, mete a mão ao bolso e da carteira retira um calendário. Pede uma esferográfica e vai traçando bolinhas à volta das datas. "Não estou a brincar", diz V. enquanto me pisca um olho, "Estou apenas a ser teu amigo, vamos ver exactamente quantos dias te restam...". Para meu espanto, aquele que há-de morrer daqui a um mês, chora. Chora. Como se a dor da despedida saisse logo ali, impelida pelas bolas riscadas no calendário.

"A coisa é séria V., não o assustes mais que não é preciso...". "Depois dela me ter dito aquilo só me têm acontecido chatices, pá!". "Caí da mota, o gajo da Family Frost ia-me matando, o meu patrão deu-me há dias um raspanete do catano e agora é a minha sogra que diz que não anda nada bem...". Tento desfazer o ambiente pesado que se gerou, enquanto V. continua a riscar bolas dos dias já passados. "Agora, só tens de riscar uma bola por dia! E olha que para o fim de Fevereiro já falta pouco e tens menos dias!". Só agora o morto que há-de ser tomou consciência do tamanho de Fevereiro. Continua a chorar, um choro absurdo como só vi neste caso. V. mete-lhe o calendário no bolso da camisa. "Tu não me faças isso pá, tu não me faças isso!". Mete a mão ao bolso para tirar o calendário, mas os nervos não lhe permitem alcançá-lo. Sou eu mesmo que o faço, disposto a terminar a brincadeira. Olho para a face impressa do rectângulo de papel e desato a rir. É um calendário de uma funerária. "Como é que eu posso dormir se a cama me arde?".

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