Esta é uma história de terror, fica desde já prevenido o leitor para que se não venha queixar posteriormente. É a história de um homem que aterrorizou centenas de inocentes crianças e nunca foi preso, nem sequer uma vez interrogado pelas autoridades a respeito desta matéria. Esta é a história de um homem que já morreu mas cuja terrível memória está profundamente vincada no subconsciente de miúdos e graúdos (mais nestes últimos, entre os quais me perfilo) e dessa fama se nunca livrará, assim eu a saiba escrever com rigor e sentimento, sendo que deste último, o sentimento, caso já se tenha esquecido do que acabou de ler, jamais se desvanecerá da minha mente enquanto eu conseguir sentar-me a uma mesa para comer. Sei que não estou só, sei que um exército de vítimas deste homem se escondem nas sombras do que não querem lembrar de novo, alguns já homens feitos que não vacilam (nem a tal se atrevem!) perante um prato a transbordar de ervilhas ou de outros vegetais não menos repugnantes.
O Acácio era um negociante de adubos e demais fertlizantes. Personagem rural, de enormes botas de cano em borracha negra, era facílimo cruzarmo-nos com ele em qualquer ponto da freguesia. Trajava de acordo com as necessidades da sua profissão, com uma enorme capa de lona pelas costas ou com uma saca de sarapilheira em capuz que o protegia da chuva quando era época da mesma. Acácio tinha um facies hirsuto, que só desbastava aos Domingos, dia em que se aprumava para os ofícios religiosos, apesar de nunca o ter contado entre os seres tementes a Deus. Pouco importa. Ver a sombra de Acácio a descer a rua era o suficiente para me colocar ao fresco rapidamente, mesmo que a personagem estivesse ainda demasiado longe. Uns óculos grossíssimos ajudavam a compor o conjunto da sua cara, encimada por uma sempriterna bóina negra. O Acácio (Senhor Acácio quando alguém lhe dirigia a palavra), estava longe de ser popular entre a criançada da aldeia e quando dirigia a palavra à miudagem, e só o podia fazer àqueles que, por uma razão qualquer se não tivessem conseguido escapulir a tempo, gerava autênticas crises de choro e ataques graves de ansiedade. Falo por mim e tenho a certeza de que por todos os outros...
Sendo comerciante de adubos, numa aldeia onde os automóveis ou meios de carga motorizados se contavam pelos dedos da mão de um lançador de foguetes que tivesse perdido o treino, Acácio estava constantemente a transportar enormes sacos de 50 Klgs. de adubo (Foskamónio, para verem como nunca o esqueci), ajoujado ao peso, subindo e descendo ladeiras, sempre com a sua capa ou sarapilheira. Fugir da presença do Acácio era bastante mais simples nessas alturas por razões que são agora óbvias. Acácio percorria atalhos que conhecia como a palma das suas mãos e a maioria dos meus percursos pedestres era calculado de forma a evitar-lhe as rotas ou os caminhos prováveis da próxima entrega de adubos.
Todo este medo me foi incutido pela Maria Fernanda e Maria de Lourdes, minha mãe e minha tia respectivamente, e servia de arma perante as minhas relutâncias em engolir feijões, couves ou saladas. Não era uma ameaça qualquer, ambas estas queridas criaturas se serviam do mesmo tema quando havia problemas à mesa.
"Não comes isso e eu chamo o Senhor Acácio!" era, digamos, a bomba atómica dos problemas de nutrição. Garfadas de comeres menos apetitosos eram manejadas com destreza, gorgomilos abaixo, colheres de sopa menos eleita entre os deliciosos líquidos que faziam (e que ainda hoje fazem, Deus lhes dê anos e anos de panelas de ferro!) desapareciam pelo esófago, fosse qual fosse a temperatura do menu.
Éramos constantemente avisados dos perigos que corríamos ao não comer tudo até à última migalha. Lembro-me muito bem da Maria de Lourdes de colher em riste na mesa da casa do meu avô, me informar com um ar absurdamente sério dos graves riscos que corria...
"Tu sabes o que é o Senhor Acácio leva dentro daqueles sacos?" Não me lembro de lhe ter respondido, nem ela esperava resposta porque ainda agora a minha desgraça se iniciava. "Aqueles sacos grandes e pesados vão cheios de meninos que não querem comer!". Devo ter pedido mais detalhes sobre o destino dos bojudos sacos e ouvi-os em absoluto medo. "Ele leva os sacos para Tomar e quando chega à ponte da Praça - quem conhece Tomar sabe com pormenores do que estou a falar - , atira o saco ao rio e os meninos morrem afogados!". (Tenho esta conversa tão presente, e eu devia ter uns cinco anos, que me recordo de ter argumentado que os meninos se livrariam dos sacos, nadando para terra). "Ele cose os sacos! Ele cose os sacos!".
Escusado será dizer que risquei de imediato o Acácio da minha lista de contactos sociais. Sei que tentei verificar a história, com imensos cuidados, perguntando à Mabília, visita regular das lides agrícolas do meu avô se o Acácio era mesmo o transportador de meninos de que tinha ouvido falar.
Deve ter sido o primeiro complot que me moveram... Toda a aldeia usava o mesmo subterfúgio, uma espécie de conspiração do terror. "Uiii! Tu tem cuidado, Pedro, olha que se não comes elas chamam o Acácio". Não me dei por vencido, fui indagando entre amigos e conhecidos e cheguei a provocar uma crise de choro no meu compincha Carlitos que apesar da sua deficência mental me parecia mais lúcido que eu. Parecia ser mesmo verdade e o melhor era não desafiar quem me mandava comer. (Um dia vi o Acácio coser a boca de um enorme saco de adubo, sentado à porta da sua casa e aí devo ter finalmente consolidado a gravidade da situação!).
O Acácio morreu há alguns anos. Que descanse em paz. No dia em que me comunicaram a sua morte, o meu primeiro pensamento não foi para a sua memória, foi para um prato de favas, prato que abomino para lá de qualquer descrição ainda hoje e que a lembrança do Acácio não me conseguirá fazer engolir alguma vez...
O Acácio era um negociante de adubos e demais fertlizantes. Personagem rural, de enormes botas de cano em borracha negra, era facílimo cruzarmo-nos com ele em qualquer ponto da freguesia. Trajava de acordo com as necessidades da sua profissão, com uma enorme capa de lona pelas costas ou com uma saca de sarapilheira em capuz que o protegia da chuva quando era época da mesma. Acácio tinha um facies hirsuto, que só desbastava aos Domingos, dia em que se aprumava para os ofícios religiosos, apesar de nunca o ter contado entre os seres tementes a Deus. Pouco importa. Ver a sombra de Acácio a descer a rua era o suficiente para me colocar ao fresco rapidamente, mesmo que a personagem estivesse ainda demasiado longe. Uns óculos grossíssimos ajudavam a compor o conjunto da sua cara, encimada por uma sempriterna bóina negra. O Acácio (Senhor Acácio quando alguém lhe dirigia a palavra), estava longe de ser popular entre a criançada da aldeia e quando dirigia a palavra à miudagem, e só o podia fazer àqueles que, por uma razão qualquer se não tivessem conseguido escapulir a tempo, gerava autênticas crises de choro e ataques graves de ansiedade. Falo por mim e tenho a certeza de que por todos os outros...
Sendo comerciante de adubos, numa aldeia onde os automóveis ou meios de carga motorizados se contavam pelos dedos da mão de um lançador de foguetes que tivesse perdido o treino, Acácio estava constantemente a transportar enormes sacos de 50 Klgs. de adubo (Foskamónio, para verem como nunca o esqueci), ajoujado ao peso, subindo e descendo ladeiras, sempre com a sua capa ou sarapilheira. Fugir da presença do Acácio era bastante mais simples nessas alturas por razões que são agora óbvias. Acácio percorria atalhos que conhecia como a palma das suas mãos e a maioria dos meus percursos pedestres era calculado de forma a evitar-lhe as rotas ou os caminhos prováveis da próxima entrega de adubos.
Todo este medo me foi incutido pela Maria Fernanda e Maria de Lourdes, minha mãe e minha tia respectivamente, e servia de arma perante as minhas relutâncias em engolir feijões, couves ou saladas. Não era uma ameaça qualquer, ambas estas queridas criaturas se serviam do mesmo tema quando havia problemas à mesa.
"Não comes isso e eu chamo o Senhor Acácio!" era, digamos, a bomba atómica dos problemas de nutrição. Garfadas de comeres menos apetitosos eram manejadas com destreza, gorgomilos abaixo, colheres de sopa menos eleita entre os deliciosos líquidos que faziam (e que ainda hoje fazem, Deus lhes dê anos e anos de panelas de ferro!) desapareciam pelo esófago, fosse qual fosse a temperatura do menu.
Éramos constantemente avisados dos perigos que corríamos ao não comer tudo até à última migalha. Lembro-me muito bem da Maria de Lourdes de colher em riste na mesa da casa do meu avô, me informar com um ar absurdamente sério dos graves riscos que corria...
"Tu sabes o que é o Senhor Acácio leva dentro daqueles sacos?" Não me lembro de lhe ter respondido, nem ela esperava resposta porque ainda agora a minha desgraça se iniciava. "Aqueles sacos grandes e pesados vão cheios de meninos que não querem comer!". Devo ter pedido mais detalhes sobre o destino dos bojudos sacos e ouvi-os em absoluto medo. "Ele leva os sacos para Tomar e quando chega à ponte da Praça - quem conhece Tomar sabe com pormenores do que estou a falar - , atira o saco ao rio e os meninos morrem afogados!". (Tenho esta conversa tão presente, e eu devia ter uns cinco anos, que me recordo de ter argumentado que os meninos se livrariam dos sacos, nadando para terra). "Ele cose os sacos! Ele cose os sacos!".
Escusado será dizer que risquei de imediato o Acácio da minha lista de contactos sociais. Sei que tentei verificar a história, com imensos cuidados, perguntando à Mabília, visita regular das lides agrícolas do meu avô se o Acácio era mesmo o transportador de meninos de que tinha ouvido falar.
Deve ter sido o primeiro complot que me moveram... Toda a aldeia usava o mesmo subterfúgio, uma espécie de conspiração do terror. "Uiii! Tu tem cuidado, Pedro, olha que se não comes elas chamam o Acácio". Não me dei por vencido, fui indagando entre amigos e conhecidos e cheguei a provocar uma crise de choro no meu compincha Carlitos que apesar da sua deficência mental me parecia mais lúcido que eu. Parecia ser mesmo verdade e o melhor era não desafiar quem me mandava comer. (Um dia vi o Acácio coser a boca de um enorme saco de adubo, sentado à porta da sua casa e aí devo ter finalmente consolidado a gravidade da situação!).
O Acácio morreu há alguns anos. Que descanse em paz. No dia em que me comunicaram a sua morte, o meu primeiro pensamento não foi para a sua memória, foi para um prato de favas, prato que abomino para lá de qualquer descrição ainda hoje e que a lembrança do Acácio não me conseguirá fazer engolir alguma vez...
9 comentários:
Já não há Srs. Acácios, já não há Marias Fernandas e Marias de Lourdes. Já não há foskamónio! Já não há Pedros nem compichas Carlitos.
E se há, ninguém mos mostrou... (e às tantas é por isso que eu até gosto de favas).
Mas dá pena verem-se perder estas coisas...
Não, o meu não tinha uma identidade tão definida . Era simplesmente "o Velho do Saco ", figura que facilmente encaixava num daqueles loucos que todas as terras têm . O efeito foi o mesmo ,excepto no pormenor das favas ...
Pois é Pedro, na verdade, também eu padeço do mesmo trauma (não fosse a Maria de Lourdes a chefe de cozinha...!). Tenho pena que não se arranje por aí uma fotografia, que figuraria certamente na caderneta de Paio Mendes, para que pudessem compreender do que falamos...
Bem, em relação às favas, eu ultrapassei o trauma... ;)
E que memórias guardas do irmão, o Sr. António Polícia, e da mãe, (?) a Dona Rosa?
Ricardo
Bem, eu como irmã mais nova do Pedro, ainda hoje culpo o Sr. Acácio por hoje ter este enorme apetite.
E quanto ás favas, bem, adoro favas.
Obg. Acácio!
Família,
(é só para abreviar, porque estar a dizer, primo, prima, mano, etc, começa a ser complicado...)
pois é, o Ti Acácio era de facto uma figura inconfundível. Também eu convivi com a sua omnipresença sempre que o assunto eram os feijões, as ervilhas e outras leguminosas que a Maria de Lourdes (minha mãe), fazia questão de preparar naqueles 'afervurados' com que nos presenteava não raras vezes. Ao contrario do meu primo Pedro Aniceto, eu cada vez tenho mais saudades dessas verdadeiras iguarias, e posso dizer que, de facto, o Ti Acácio foi ajuda preciosa para que eu aprendesse a gostar dos ditos.
É que a minha mãe sempre dizia que "...quem não gosta tem que comer mais um bocadito para aprender a gostar!..." "...mas se não comes, vem lá o sr. Acácio!..."
Bons velhos tempos.
Mas voltando ao Ti Acácio, eu tive o privilégio de lhe dar algumas boléias. Quando fui para Leiria, para a tropa, num belo dia conversámos já não sei bem onde e ele apercebeu-se que eu à segunda-feira de madrugada, passava em Tomar. Então a partir daí, e por um bom tempo, lá aparecia ele em minha casa, nas Courelas, ao domingo à noite a perguntar se eu lhe dava a boléia. Na segunda, apesar de eu sair cedo (por volta das 6 da manhã, lá estava ele sempre a horas. Houve até um dia em que eu cheguei a casa tarde no domingo e a minha mãe me disse: " esteve cá o sr. Acácio". Mas como ele não apareceu mais tarde eu pensei que ele tivesse desistido.
Na segunda de manhã quando ia a sair de casa, dei com ele sentado nos degraus da minha porta. Apesar da hora e da camada de geada que estava, não fiquei totalmente surpreendido mas, ainda lhe perguntei
- "então Ti Acácio, como é que sabia que eu ia hoje?"
- "não sabia", responeu ele com uma calma impressionante.
- "e mesmo assim veio? E se eu tivesse saído mais cedo?
- "era difícil, eu já estou aqui desde as 4 da manhã..." " ... é que hoje tenho mesmo que ir a Tomar, tenho lá uns negócios..."
Era mesmo assim o Ti Acácio. Tambem o levei uma vez para lisboa. Ele pediu-me para que quando lá fosse que o avisasse porque queia lá ir a casa da filha que mora no Bairro da Fraternidade, S. João da Talha(para quem conhece a zona :) fica em frente ao Bairro da Figueira, do outro lado da A1. A filha(não me lembro de qual delas é) é casada com um sr. Cotrim ,proprietário de um supermercado e café, nesse mesmo bairro. Foi aí que o fui levar dessa vez.
Simplesmente espectacular... eu também passei por algo similar na infância, mas o "monstro" era mesmo denominado de "homem do saco".
Favas e Grão.. nunca na vida. :)
Parabéns pelo blog espectacular Pedro.
Pena a minha nunca ter aparecido um Acácio na minha vida. Talvez não devorasse favas, ervilhas, grão, batatas, TUDO!!!.
Enfim, eu gostava de ter tido um Acácio !!!!! eu como eu gostava
Mas porquê Tomar? Porque é que Tomar é usado como um local onde a tragédia acontece? :)
Cump.
Sérgio R.
Tomar era o suposto local onde o Acácio deitava ao rio os meninos que não comiam.
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