Marrafa. Não lhe conhecemos o nome próprio, parece que ninguém conhece. Isto talvez se isentarmos do desconhecimento alguns soldados da Guarda Nacional Republicana que, ao que consta na má língua da aldeia, não só lhe conhecem o baptismal nome, mas também alguns ossos dedilhados a casse-tête. Desculpemos a minudência porque todos sabemos (uns mais que outros, certo é) como o chanfalho é pouco minucioso no que diz respeito à contagem de ossos mais fininhos e miúdos.
Marrafa!
É talvez o único nome que faz tremer de pavor uma aldeia inteira, talvez tão só porque é o único bandido da mesma. E Deus saberá como deve ser aborrecido e custoso ser-se o único fora da lei do lugarejo, sujeito a arcar com a fama de todas as patifarias cometidas num raio de 3 quilómetros bem medidos contadinhos a partir da matriz do Rosário, o que já de si não é fácil mas que duplica a responsabilidade e a má fama do visado se pensarmos que a Matriz do Rosário está plantada na margem do Tejo o que faz com que a área de um círculo traçado a partir da Matriz metade seja dentro de água. Que raio de exemplo se foi arranjar, mas a culpa é, para não variar, do Marrafa...
Marrafa é sobejamente conhecido pelos seus dotes de pilha-galinhas, não que não seja um especialista, não faria negaças a coelhos, patos, borregos, quem sabe uma vaca se preciso fosse e para o carrego tivesse ajudante. Especializou-se na infância, consolidou e progrediu praticando a arte para não perder o dedo, fino ao que consta que não desdenharia uma carteira, umas calças novas do varal, enfim pecadilhos juvenis e forças de hábito que num lugarejo piscatório torna-se lei o ditado do que quer que venha à rede seja gado e prontamente arrecadado. Marrafa tem uma aura, uma mística até que o persegue além da Guarda propriamente dita. De miúdo se habituou à sobrevivência física, mau grado as monumentais malhas do progenitor, da Guarda e de um ou outro felizardo capaz de lhe filar os fundilhos durante uma excursão venatória e não necessariamente por esta ordem. Artista de renome, sobram as histórias de roubo, depena e manjar, tudo no mesmo local, que Marrafa não teve nunca tempo a perder e sabe-se como a ditadura do estômago nos impõe disciplinas complicadas de quebrar. Roubados houve de quem ouvi estas lendas, algumas nem tanto, capazes de lhe entregar o resto da capoeira por troca do segredo de como conseguir depenar um pato sem água quente, acender uma fogueira sem fumo ou grande crepitar, tudo isto debaixo das barbas do vigilante munido de varapau e caçadeira.
Claro que metade disto é obviamente mítico e vem do pó dos tempos, a outra metade não é, que coelhos roubados houve há vinte anos que ainda hoje povoam os pesadelos de habitantes do Rosário, não pelo valor, que um coelho há vinte anos valia apenas um coelho, exactamente o que vale hoje, um bom estufado, mas pelas malas artes e sortilégios do marrafal personagem.
Atrás dos tempos vêm tempos e atrás do Marrafa vem a Guarda (mas isto já sabíamos) e mais quarenta ou cinquenta donos de galinhas sedentos de vingança, uns nem tanto que foram roubados há tantos anos que não sendo já moços agora pouco andam, mais depressa se sentam numa mesa de bisca lambida a trocar resultados da Terceira Liga por garrafas de cerveja fresca, desfiando memórias da grande galeria de bandidos Rosarenses que, por força das circunstâncias sabemos agora ter um único retrato exposto. Não que isso sejam contas de outro Rosário, porque o são do Rosário de hoje que já não é o que foi ontem, a roda do tempo não pára e quando o faz é apenas para meter ar no pneu. Mais uma corrida, mais uma viagem, e levemos uns coelhos para um eventual desjejum.
Foi num destes grupos que hoje desaguei à hora da cafeína percebendo de imediato que a tensão faiscava no ar com vontade de se transmitir por contágio primário. Mal abri a boca para a bica a notícia quase saltou do pacote de 8 gramas de açúcar e se não foi do pacote veio debaixo da chávena, que tão esganada estava por ser conhecida.
"O Marrafa levou dois tiros!", assim de chofre, não os tiros mas o estrondo da notícia.
Pim-pam-pum cada bala mata um pensei eu antes de estacar o movimento cerebral devido ao elevado número de projécteis da lenga-lenga face à crueza da notícia. Havia discussão pesada na sala, as perguntas emergiam como golfadas de sangue dos buracos de bala. "Morreu?" Qual quê, um tipo daqueles não morre assim. Está no hospital entre a vida e a morte, mas aposto já uma Sagres Preta em como ainda vai bifar muita criação antes de se dar ao Criador. Sorrio. Sorrio porque imagino o Criador a fazer um check-in ao Marrafa, preocupado com os seus bípedes, palmípedes e restante galinhame. Queira o próprio conhecer os jardins do paraíso e estou em crer que nem a serpente lhe escapará.
Toda a gente quer conhecer a identidade do recém herói, capaz de pespegar dois balázios na cabeça do Marrafa, sugere-se até um "baixo assinado" para o juíz da Comarca que tamanho feito não merece pena ou castigo, antes um louvor ou até uma tença anual por bons serviços prestados. Nisso e na cerveja fresca há unanimidade!
"Então e quem é que lhe deu os tiros?" Foi aquele tipo gordo lá de baixo do Lugar de Avoenga, aquele que passa a vida bêbado, o que gasta o dinheiro todo nas tabernas...
Regressa o burburinho à conversa, como é das luas que regressem as marés. Ti Chico, o do Mocho como é naturalmente conhecido, embarcadiço de longa viagem, levou a mão à pala do surrado boné. Quando Ti Chico bota sentença é como se fosse um régio decreto, brotam silêncios só quebrados pelos ruídos da mastigação de tremoço.
"Ora, isso até é bom. A Guarda nunca mais o apanha. Ou então se vão prender bêbados, têm de prender a gente todos!"
Marrafa!
É talvez o único nome que faz tremer de pavor uma aldeia inteira, talvez tão só porque é o único bandido da mesma. E Deus saberá como deve ser aborrecido e custoso ser-se o único fora da lei do lugarejo, sujeito a arcar com a fama de todas as patifarias cometidas num raio de 3 quilómetros bem medidos contadinhos a partir da matriz do Rosário, o que já de si não é fácil mas que duplica a responsabilidade e a má fama do visado se pensarmos que a Matriz do Rosário está plantada na margem do Tejo o que faz com que a área de um círculo traçado a partir da Matriz metade seja dentro de água. Que raio de exemplo se foi arranjar, mas a culpa é, para não variar, do Marrafa...
Marrafa é sobejamente conhecido pelos seus dotes de pilha-galinhas, não que não seja um especialista, não faria negaças a coelhos, patos, borregos, quem sabe uma vaca se preciso fosse e para o carrego tivesse ajudante. Especializou-se na infância, consolidou e progrediu praticando a arte para não perder o dedo, fino ao que consta que não desdenharia uma carteira, umas calças novas do varal, enfim pecadilhos juvenis e forças de hábito que num lugarejo piscatório torna-se lei o ditado do que quer que venha à rede seja gado e prontamente arrecadado. Marrafa tem uma aura, uma mística até que o persegue além da Guarda propriamente dita. De miúdo se habituou à sobrevivência física, mau grado as monumentais malhas do progenitor, da Guarda e de um ou outro felizardo capaz de lhe filar os fundilhos durante uma excursão venatória e não necessariamente por esta ordem. Artista de renome, sobram as histórias de roubo, depena e manjar, tudo no mesmo local, que Marrafa não teve nunca tempo a perder e sabe-se como a ditadura do estômago nos impõe disciplinas complicadas de quebrar. Roubados houve de quem ouvi estas lendas, algumas nem tanto, capazes de lhe entregar o resto da capoeira por troca do segredo de como conseguir depenar um pato sem água quente, acender uma fogueira sem fumo ou grande crepitar, tudo isto debaixo das barbas do vigilante munido de varapau e caçadeira.
Claro que metade disto é obviamente mítico e vem do pó dos tempos, a outra metade não é, que coelhos roubados houve há vinte anos que ainda hoje povoam os pesadelos de habitantes do Rosário, não pelo valor, que um coelho há vinte anos valia apenas um coelho, exactamente o que vale hoje, um bom estufado, mas pelas malas artes e sortilégios do marrafal personagem.
Atrás dos tempos vêm tempos e atrás do Marrafa vem a Guarda (mas isto já sabíamos) e mais quarenta ou cinquenta donos de galinhas sedentos de vingança, uns nem tanto que foram roubados há tantos anos que não sendo já moços agora pouco andam, mais depressa se sentam numa mesa de bisca lambida a trocar resultados da Terceira Liga por garrafas de cerveja fresca, desfiando memórias da grande galeria de bandidos Rosarenses que, por força das circunstâncias sabemos agora ter um único retrato exposto. Não que isso sejam contas de outro Rosário, porque o são do Rosário de hoje que já não é o que foi ontem, a roda do tempo não pára e quando o faz é apenas para meter ar no pneu. Mais uma corrida, mais uma viagem, e levemos uns coelhos para um eventual desjejum.
Foi num destes grupos que hoje desaguei à hora da cafeína percebendo de imediato que a tensão faiscava no ar com vontade de se transmitir por contágio primário. Mal abri a boca para a bica a notícia quase saltou do pacote de 8 gramas de açúcar e se não foi do pacote veio debaixo da chávena, que tão esganada estava por ser conhecida.
"O Marrafa levou dois tiros!", assim de chofre, não os tiros mas o estrondo da notícia.
Pim-pam-pum cada bala mata um pensei eu antes de estacar o movimento cerebral devido ao elevado número de projécteis da lenga-lenga face à crueza da notícia. Havia discussão pesada na sala, as perguntas emergiam como golfadas de sangue dos buracos de bala. "Morreu?" Qual quê, um tipo daqueles não morre assim. Está no hospital entre a vida e a morte, mas aposto já uma Sagres Preta em como ainda vai bifar muita criação antes de se dar ao Criador. Sorrio. Sorrio porque imagino o Criador a fazer um check-in ao Marrafa, preocupado com os seus bípedes, palmípedes e restante galinhame. Queira o próprio conhecer os jardins do paraíso e estou em crer que nem a serpente lhe escapará.
Toda a gente quer conhecer a identidade do recém herói, capaz de pespegar dois balázios na cabeça do Marrafa, sugere-se até um "baixo assinado" para o juíz da Comarca que tamanho feito não merece pena ou castigo, antes um louvor ou até uma tença anual por bons serviços prestados. Nisso e na cerveja fresca há unanimidade!
"Então e quem é que lhe deu os tiros?" Foi aquele tipo gordo lá de baixo do Lugar de Avoenga, aquele que passa a vida bêbado, o que gasta o dinheiro todo nas tabernas...
Regressa o burburinho à conversa, como é das luas que regressem as marés. Ti Chico, o do Mocho como é naturalmente conhecido, embarcadiço de longa viagem, levou a mão à pala do surrado boné. Quando Ti Chico bota sentença é como se fosse um régio decreto, brotam silêncios só quebrados pelos ruídos da mastigação de tremoço.
"Ora, isso até é bom. A Guarda nunca mais o apanha. Ou então se vão prender bêbados, têm de prender a gente todos!"
1 comentário:
Como é que me escapou este artigo!
:-(
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