Um mar de lágrimas e uma braçada de rissóis em riscos de deixar de estar congelada. As braçadas atravessariam o mar, se fosse o caso, que o não era, o tempo é de falso estio, as sombras parecem-nos bóias, portos de abrigo das agruras, quer do sol, quer da vida propriamente dita. Mas não veio o leitor aqui com toda a certeza saber do tempo ou das sombras, mas sim da desgraça que tocou em sorte à própria criatura que ali tinha à minha frente. Eu, de regresso à bica, ela de nariz molhado, olhos vermelhos e ar angustiado.
"O senhor por acaso não tem um saco de plástico que me dê com urgência?". Das razões do invulgar pedido não precisarei de as enunciar, os bracinhos em redondo, os rissóis ali, tem-te não descongeles, o frio que os queimava desvanece-se pouco a pouco no calor do cuidado em não os deixar cair. "Eu trazia um saco com rissóis, o saco rompeu-se, isto caiu tudo, se calhar o senhor do café já os não quer...". O medo a escorrer-lhe dos olhos, a angústia a ler-se no intervalo de cada soluço. Logo ali se resolveu o problema do saco, eu mesmo alinhei os rissóis na superfície do balcão, parecem-me uma parada militar, alinhados ali às ordens de sabe Deus quem.
Limpei-lhe a torrente de lágrimas, um, dois, três guardanapos, a fonte que não secava, aparece o dono dos rissóis que ainda não o é, que se calhar os não quer, eles ali alinhados no balcão, areia e terra misturadas no pão ralado, uma folha de árvore amarelada a espreitar do meio do grupo, enfim, estes rissóis já viram dias melhores, quem sabe se o promitente comprador dos mesmos ainda os quererá, apostaria que não. Que pronto, não vale a pena chorares mais, são coisas que acontecem. "Eu trazia tudo direitinho, juro, nem vinha a brincar com o saco, a minha madrasta vai matar-me" senta-se nervosamente numa cadeira enquanto remexe em dois papéis que traz nas mãos sapudas. Eu percebi-lhe o medo do castigo de curto prazo, iria até jurar que tinha lido muito mais, que não, não exageres, afinal de contas eu também já sofri as agruras do leite derramado, que quando não era leite eram ovos ou outra qualquer mercadoria perdida no pó dos tempos ou dos caminhos.
Mais nervos, mais lágrimas, ela levanta-se continua a inquirir-me com os olhos rasos de água e eu vou lendo algo mais, uma suspeita que lentamente se avoluma. Tinhas ido levar rissóis a mais algum lado? Perdeste o dinheiro com que te pagaram nos outros lados? Acena-me que sim para me dizer que não logo de seguida, tira de um bolso um envelope amachucado de onde rolam algumas notas e moedas. Então o que é que se passa? Baixo-me, uma pessoa confessa-se melhor a alguém a quem possa olhar nos olhos, ou não, a mim só me apetece abraçá-la, consolar-lhe a dor, afuguentar-lhe a angústia, quem sabe contar-lhe de outros ovos e outros rissóis. "Perdi um papel com um número de telefone...". Mais choro, mais soluços enquanto aguardo o resto da história. Procuramos, sem sucesso, o papel nas redondezas. Vamos mesmo ao local da desgraça do saco.
"É um papel pequenino, vernelho e branco, trago-o sempre comigo, escondido...". Há ali mais do que rissóis em risco, há ali uma vida a querer misturar-se com a minha. Porque o trazes escondido? "Porque é o número de telefone da minha avó, porque ninguém pode saber que o tenho, porque a minha madrasta vai matar-me se souber que o tenho...". Não podes falar com a tua avó? "Não, não posso, ela tinha-me dado o papel se eu precisasse, o senhor não vai dizer nada à minha madrasta, pois não?". Que não, que ficasse descansada, que segredo dela continua seguro como esteve até à perda do seu tesouro. Voltamos ao café. Ela pede-me que espere por ela enquanto percorrerá de novo o caminho que a trouxe até aqui, na esperança de um golpe de sorte. Regressa cabisbaixa, a minha alma a ficar mais pequena a cada minuto. Disparo de chofre: E agora? "Agora vou para casa, vou rezar..." Rezar? "Sim, vou rezar durante uma hora para que Deus faça o milagre de fazer cair o papel sobre a minha cama...". A tua madrasta bate-te? "Sim, bate". É por causa disso que tens o número da tua avó? Baixa a cabeça e consente. Não sei o que responder. "Obrigado, muito obrigado. O senhor não vai contar nada, pois não?". Não, não vou, fica descansada. Tenho um nó na garganta; os rissóis, meias luas tristes, derretem água em cima do balcão. Um mar de água.
"O senhor por acaso não tem um saco de plástico que me dê com urgência?". Das razões do invulgar pedido não precisarei de as enunciar, os bracinhos em redondo, os rissóis ali, tem-te não descongeles, o frio que os queimava desvanece-se pouco a pouco no calor do cuidado em não os deixar cair. "Eu trazia um saco com rissóis, o saco rompeu-se, isto caiu tudo, se calhar o senhor do café já os não quer...". O medo a escorrer-lhe dos olhos, a angústia a ler-se no intervalo de cada soluço. Logo ali se resolveu o problema do saco, eu mesmo alinhei os rissóis na superfície do balcão, parecem-me uma parada militar, alinhados ali às ordens de sabe Deus quem.
Limpei-lhe a torrente de lágrimas, um, dois, três guardanapos, a fonte que não secava, aparece o dono dos rissóis que ainda não o é, que se calhar os não quer, eles ali alinhados no balcão, areia e terra misturadas no pão ralado, uma folha de árvore amarelada a espreitar do meio do grupo, enfim, estes rissóis já viram dias melhores, quem sabe se o promitente comprador dos mesmos ainda os quererá, apostaria que não. Que pronto, não vale a pena chorares mais, são coisas que acontecem. "Eu trazia tudo direitinho, juro, nem vinha a brincar com o saco, a minha madrasta vai matar-me" senta-se nervosamente numa cadeira enquanto remexe em dois papéis que traz nas mãos sapudas. Eu percebi-lhe o medo do castigo de curto prazo, iria até jurar que tinha lido muito mais, que não, não exageres, afinal de contas eu também já sofri as agruras do leite derramado, que quando não era leite eram ovos ou outra qualquer mercadoria perdida no pó dos tempos ou dos caminhos.
Mais nervos, mais lágrimas, ela levanta-se continua a inquirir-me com os olhos rasos de água e eu vou lendo algo mais, uma suspeita que lentamente se avoluma. Tinhas ido levar rissóis a mais algum lado? Perdeste o dinheiro com que te pagaram nos outros lados? Acena-me que sim para me dizer que não logo de seguida, tira de um bolso um envelope amachucado de onde rolam algumas notas e moedas. Então o que é que se passa? Baixo-me, uma pessoa confessa-se melhor a alguém a quem possa olhar nos olhos, ou não, a mim só me apetece abraçá-la, consolar-lhe a dor, afuguentar-lhe a angústia, quem sabe contar-lhe de outros ovos e outros rissóis. "Perdi um papel com um número de telefone...". Mais choro, mais soluços enquanto aguardo o resto da história. Procuramos, sem sucesso, o papel nas redondezas. Vamos mesmo ao local da desgraça do saco.
"É um papel pequenino, vernelho e branco, trago-o sempre comigo, escondido...". Há ali mais do que rissóis em risco, há ali uma vida a querer misturar-se com a minha. Porque o trazes escondido? "Porque é o número de telefone da minha avó, porque ninguém pode saber que o tenho, porque a minha madrasta vai matar-me se souber que o tenho...". Não podes falar com a tua avó? "Não, não posso, ela tinha-me dado o papel se eu precisasse, o senhor não vai dizer nada à minha madrasta, pois não?". Que não, que ficasse descansada, que segredo dela continua seguro como esteve até à perda do seu tesouro. Voltamos ao café. Ela pede-me que espere por ela enquanto percorrerá de novo o caminho que a trouxe até aqui, na esperança de um golpe de sorte. Regressa cabisbaixa, a minha alma a ficar mais pequena a cada minuto. Disparo de chofre: E agora? "Agora vou para casa, vou rezar..." Rezar? "Sim, vou rezar durante uma hora para que Deus faça o milagre de fazer cair o papel sobre a minha cama...". A tua madrasta bate-te? "Sim, bate". É por causa disso que tens o número da tua avó? Baixa a cabeça e consente. Não sei o que responder. "Obrigado, muito obrigado. O senhor não vai contar nada, pois não?". Não, não vou, fica descansada. Tenho um nó na garganta; os rissóis, meias luas tristes, derretem água em cima do balcão. Um mar de água.
2 comentários:
Este blogue de leitura diária normalmente anima-me o dia. Hoje, como escreves, a alma ficou-me um pouco mais pequena e dorida.
Enfim, comovente....
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