31 maio 2006

Engenho e arte

"No sítio onde vais a pessoa que organiza a sala de espera não sabe ler nem escrever e apesar disso consegue organizar mais de cento e cinquenta consultas diárias!". Espanta-me o número e a premissa, sabemos como funciona um cérebro de informático, sempre a pensar em optimizar sistemas, criar fluxos, resolver problemas bicudos. "Como é que fazem? Têm as pessoas em filas?" é o que pergunto porque me parece o mais óbvio. "Não, na sala de espera há mulheres com crianças ao colo, muitos velhos, muita gente com problemas físicos, isso era absolutamente impensável". Fico a matutar no dilema, mas curta se tornou a viagem e consequentemente a demora. A sala de espera (termo eufemístico que se atribuiu a um largo barracão coberto a chapa zincada onde o ar duplamente aquecido se sente pegajoso) é um caos. Por razões que não são para aqui chamadas, estou na antecâmara de um "endireita", personagem cuja fama de milagreiro arrasta gente de todos os pontos do país. São centenas. Interrogo-me como se gere aquele rio de coxos, mancos e "doentes de umas coisas" como ouço alguém dizer. Uma velha de ar absolutamente patibular recebe os queixosos entre uma singular pilha de caixas de cartão. São muitas e todas estão de cogulo com trapos e farrapos. Apresenta-se o doente, eu sou apenas acompanhante. Não há nomes, não há registos de qualquer espécie. A velha manuseia uma lista telefónica e eu estou atónito com a mecânica. Abre a lista, rasga uma folha, dobra-a ao meio, volta a rasgá-la em duas e a cada metade agrafa dois pedaços de farrapo. Uma é dada a quem se regista, a outra é empilhada por uma ordem que me parece ser a ordem de atendimento. Nem me atrevo a desaparecer do local sem rever a estranha operação. Uma folha arrancada do grosso da lista, dobrar ao meio, voltar a rasgar, uma rápida busca num dos caixotes, dois pedaços de trapo rotos à pressa agrafados em cada metade da página. Não entendo. Volto à presença da pessoa que acompanho e revejo-lhe o ar de puro gozo estampado na face. "Então, já percebeste como se faz?" Não, confesso que não, é tudo demasiado estranho. Ela fica com metade da folha, dá a outra metade ao doente e depois? "Não te preocupes, isto funciona, ela vai chegar ao pé de mim quando for a minha vez e vai mandar-me entrar". Assim é, decorridas quase duas horas a velha aproxima-se e avisa em tom quase marcial que chegou a vez. Escusado será dizer que gastei parte do tempo de espera a tentar descodificar o método. A mulher não sabe ler, não sabe escrever, não é fácil ter de memória uma lista de quase cem pessoas em constante entra e sai. Ponho, em desespero absoluto de causa a possibilidade do uso do número da página impresso na folha. "Não, eu já te disse, ela não sabe ler e além disso o número das páginas da lista só está no topo, mas viste como veio até nós sem nenhuma dificuldade?". Sim, vi, e continuo sem perceber. "Pedro, viste-a agrafar os farrapos nas metades da folha?" Sim, claro que reparei, e os farrapos são iguais em ambas as metades. "Pronto, é esse o segredo, de que cor é a minha camisa e as minhas calças?". Vermelho e azul. Arranco-lhe da mão a meia página amarela. Os farrapos vermelho e azul parecem rir-se de mim.

3 comentários:

Anónimo disse...

Lembras-te do ar de espanto com que me perguntaste, um dia, "o que é isso da aquisição da linguagem?" Pois é. Neste caso é a leitura. Ler não se resume a decifrar a linguagem verbal (vulgo letras, números, palavras e frases), daí o raciocínio da busca de uma lógica. É muito mais do que isso. E é muito mais simples do que isso. É associar símbolos a conceitos.

Curioso que este teu post tenha vindo hoje, precisamente no dia em que o Governo lança um Plano Nacional de Leitura, e em que dei forte gargalhada ao ouvir o Saramago dizer que vê a sua integração na Comissão de honra deste plano como uma "fatalidade, como as bexigas".

Unknown disse...

Adorei. Bravo!

Eis uma prova do que é ser inteligente. Ter um desafio e resolvê-lo.
É por estas e por outras que digo que a Cultura não é um exclusivo dos 'letrados'.

Abraços,

Anónimo disse...

Gostei, mais um exemplo de que Formação não está directamente ligada à Inteligência (ou mesmo à Educação).