27 maio 2006

Não tenho mão na voz que sou

Dias há em que se joga chinquilho à noite no largo maior da aldeia, diria o mais apressado dos narradores se não tivesse o devido e prudente cuidado de escolher a melhor malha, pesar consoantes e vogais, embalar com a mão o peso, calcular o efeito e o voo e só depois permitir ao leitor que apreciasse o efeito da malha sobre o pino, mais ou menos pó levantado do chão, as malhas a esconderem-se nas sombras das árvores que rodeiam o coreto. Nem sequer me são necessários muitos minutos para perceber que estou na presença de oficiais desta arte. Nada de gestos eufóricos, punhos cerrados no ar a socar os acertos ou risos de zombaria dirigidos aos vencidos. Com jogadores desta igualha não há muito que saber, antes aprender, a malha voa, o pino tomba num clinque e a cada dez rondas emborcam-se umas ginjas às custas da dupla que perde. Estamos de acordo, a ginja nivela os competidores. No breve momento do baldear do copo não há vencidos nem vencedores, apenas homens que jogam.

Em tempos formulou o narrador deste pedaço de noite quente, uma teoria (muito gosta este narrador de formular coisas...), a de que o álcool iria certamente toldar cálculos e precisões, arcos e trajectórias e prolongar o desacerto e quem sabe o jogo até horas mais impróprias para gente desta idade. Nada formulou o narrador de mais errado, aprendeu-o na própria carne, melhor dizendo nos próprios rins no dia em que teve notórias dificuldades em continuar a conjecturar o que quer que fosse depois da quarta ginja. Depois desse inusitado episódio, meteu o narrador a viola no saco da dita e limitou-se a apreciar a mestria de quem joga sem pressas ou grandes glórias. "Vai uma ronda, senhor Pedro? Aqui o Pereira hoje já viu dias melhores, diz que lhe doem as costas...". Não aceito o desafio, ainda se lembra quem escreve estas linhas da última humilhação pública sofrida ao chinquilho e isto antes das ginjas, o que faria depois.

De facto o Pereira está claramente fora de forma; a malha voa mais do que é costumeiro e necessário, chego a vê-la deslizar para fora da terra quente e castanha, a raspar o empedrado do largo como se quisesse sair por ali fora à doida rumo a outras paragens. Tem o Pereira uma notória dificuldade em baixar-se para levar a mão ao solo e mais ainda para se erguer com as metálicas bolachas na mão. "Este gajo hoje está a enterrar-me, o melhor é irmos ali fazer contas e acabar com isto...". A mão na pala do boné, um sonoro boa noite às pessoas presentes no largo. Recolho os meus pertences abandonados sobre o banco e saúdo eu também um grupo de mulheres que tagarela entre si. É então que me apercebo de uma cena inusitada, a de uma perna completamente desnudada, uma saia descuidadamente aberta de uma das presentes. Sorrio. Acabo de perceber de onde vinha o desacerto da mão do Pereira. Rodo o pescoço para o localizar, um pouco atrás de mim, disposto a desafiá-lo a confirmar-me a suspeita. Um dedo indicador sobre os lábios, uma piscadela de olho e uma voz que lá atrás me diz: "E se vocês soubessem o tempo que me leva a endireitar-me... A ginja do senhor Pedro pago-a eu!"

2 comentários:

botinhas disse...

Aos anos que não jogo à malha! Ginja bebi no outro dia por causa da garganta... (pelo menos foi uma boa desculpa que arranjei)
Voltando à malha: podemos ter acesso aos dados técnicos do jogo? Tamanho e peso do disco, distância dos pinos, distância de lançamento e cor da saia da menina que desacerta o adversário. ;)

Anónimo disse...

Este não escapa ao "Lugar aos Outros"!
E é já esta semana.
Gramei aos molhos.
LG