Quase não dava pelo acontecimento apesar de ele se ter passado debaixo do meu nariz. Quase não pude expirar de espanto pela velocidade com que tudo aconteceu embora tivessem sido os meus sentidos a chamar-me à realidade. Só percebi que um vulto negro atravessava a estrada, um corpo curvado que apenas não caía por culpa de uma bengala em cor de mel, ploc, ploc, ploc, não fazia bem este barulho por causa da borracha na ponta, seria mais um fshh, fshh, fshh, lixado de verbalizar quanto mais de ouvir. Conheço-a daqui e pouco mais. Habituei-me a não a cumprimentar porque ela é profundamente surda, opto agora por um gesto largo de mãos e um sorriso ao qual ela me responde com um sonoríssimo "Oláááááá" que me faz lembrar um vendedor de gelados. Dizia eu que tinham sido os meus sentidos a despertar-me para a tragédia iminente. Um camião desce a rua a toda a brida só o recordarei mais tarde, ligeiramente mais tarde, quando já fora do meu alcance visual se ouviu um ranger pavoroso de pneus, mais tarde ligeiramente mais tarde o vento haveria de fazer o favor de trazer ao meu olfacto um agoniante cheiro a borracha queimada. Diz quem viu que a senhora de negro atravessou a rua, tem-te não caias, fshh, fshh, fshh, arrastando os chinelos, enquanto o motorista do camião se endireitava em pé em cima do travão tentando evitar o que parece inevitável. Deus guarda os que ama, só não sabemos onde os arruma, o vulto negro não deu por nada, a morte meteu uma segunda e falhou por uma unha da cor do xaile da mulher. Virei mais tarde a encontrar o motorista atento ainda com o a testa coberta de suor que não sei se do susto se das cervejas que entretanto ingeriu ao balcão a explicar o milagre da vida a toda a gente que entrava porta dentro. "Sacana da velha! Eu apetecia-me era esganá-la! Ainda lhe dei uns gritos mas ela virou-se para mim, sorriu e disse Olááááá!"
24 maio 2006
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