17 maio 2006

Povo que lavas (E eu rio)

Há dias assim, quentes e pegajosos em que não temos a mínima paciência para alinhavar um post com um mínimo de bom gosto literário mesmo que a isso não sejamos obrigados. Por isso mesmo hoje vai a granel que é no fundo como as coisas por vezes nos chegam.

-Atingi o estatuto de funcionário da Maternidade Alfredo da Costa. A minha cara já é tão familiar nas Consultas Externas que já aceito encomendas de produtos diversos vindos do exterior. Tabaco, sumos, empadas e sandes de queijo já há algum tempo eram por mim fornecidos a algumas das pessoas que estoicamente atendem filas intermináveis de público durante as manhãs. Mas hoje subi mais um degrau na escala do tráfico de influências, pois ao sair para fumar um cigarro e comprar um jornal, o segurança da porta propôs-me que comprasse "algo não desportivo" porque quando voltasse teria à minha disposição A Bola e o Record. Assim, comprei o 24 Horas (No dia do Juízo Final isto deve contar alguma coisa...) e uma revista cor de rosa (não era para mim, tenham dó...). O meu próximo objectivo é ter um cartão magnético que me permita picar o ponto e facilite a entrada pela porta de serviço.

-Morreu o senhor Yutaka Yukota (não foi hoje, mas eu não sabia), o único sobrevivente de perto de uma centena de jovens soldados japoneses que tripularam uma das últimas armas kamikaze da Segunda Guerra Mundial, a saber, o Kaiten. O Kaiten, provavelmente um absoluto desconhecido para o leitor deste blog (e para mais dezasseis biliões de pessoas seguramente) foi um torpedo tripulado utilizado em missões suicididas contra a esquadra americana no Pacífico. Yutaka Yukota chegou até ao meu conhecimento por via de um livro deveras interessante escrito a duo com o americano Joseph D.Harrington. A obra, Kaiten - I was a human torpedo (Harper Collins) conta em detalhe as inacreditáveis condições de utilização da arma, a dureza da preparação das missões aos ritos de imposição do hachimaki (a faixa que envolve a cabeça do soldado que está consciente da inevitabilidade da sua própria morte em combate) e dá-nos uma perspectiva quase real das condições emocionais que envolviam estas missões, da decisão de dar a vida pelo imperador à brilhante descrição dos pensamentos de um soldado suicida quando um alvo era falhado. O Kaiten era extremamente rudimentar na aquisição do alvo (aproximação visual) e deixava o tripulante à mercê do seu próprio destino sempre que o combustível (de curtíssima duração) se esgotava, levando-o na maioria das situações a optar pela auto detonação. Um livro riquíssimo de detalhes de análise emocional e histórica com passagens preciosas que definem bem o background cultural de um povo do qual desconhecemos quase tudo.

-Uma pesquisa Google levou-me até às páginas de um jornal do Hawai onde pude "folhear" a secção da Necrologia. Culturalmente nossos "primos" (é inacreditável a quantidade de apelidos de origem portuguesa), fiquei fascinado com a informalidade local dos anúncios, por duas razões: A comunicação do falecimento e data das cerimónias fúnebres inclui aspectos tão curiosos como a indicação do traje (Casual, Formal, Aloah attire), o que me levou a tomar uma nota mental para me certificar se o Aloah attire é mesmo uma saia de palha, camisa garrida e colar de flores ao pescoço até ao tipo de bebidas servidas na recepção que a família por norma organiza após a cerimónia (Punch Bowl, Light Drinks). A maior parte das comunicações de falecimento inclui o aviso de que o defunto dispensa flores na cerimónia, sendo indicado um número de conta de um hospital ou instituição social para o qual devem ser endereçadas as doações equivalentes.

-As salas de espera dos hospitais públicos portugueses são uma verdadeira mina de recolha de pedras preciosas para crítica social. Hoje, por exemplo, descobri através das narrações tonitruantes de algumas das presentes que "depois da monopausa aparecem muitos prolipos nos úteros, coisa que no caso de uma delas, já a tinha obrigado a fazer uma cliópsia".

6 comentários:

Hesed disse...

Bem... sinto-me quase um especialista em torpedos, visto que conhecia bem o Kaiten através dum magnífico programa emitido pelo Canal História...:-)
Agora outra coisa que me está a intrigar bastante: que andas tu a fazer tão frequentemente na Maternidade??
Consultas para mudar de sexo não deve ser certamente, e estudos sobre a psicologia da maternidade também não me parece plausível... ou será...?

Pedro Aniceto disse...

"Pedro e que tal fazer-se desentendido e entrar pela dita porta de serviço? "

Há uma velha máxina que diz "You can go where you want if you look serious and carry a clipboard" (E que funciona!). Almoça-se na cantina do pessoal sem nenhum tipo de controlo e circula-se em grande parte do edifício sem nenhuma restricção. Há sete meses que lá vou com enorme regularidade e rapidamente se detectam alguns pontos fracos na rotina da rendição de pessoal, por exemplo. Sabemos que há certas coisas (positivas e negativas) pelo facto de correrem portugueses no sistema... Ao terceiro mês passei a tratar um dos funcionários mais importantes na cadeia de "comando" pelo nome (tinha-o sabido numa reportagem da Sic sobre a Maternidade). Durante um período de obras recentemente terminadas, foi o caos (organizado) e a estratégia do "Precisa de alguma coisa lá de fora?" tem sido de enorme utilidade quando a mim me perguntam "Então, está por cá hoje?". É nessa altura que começo aquele tão lusitano discurso do "Ah, ainda bem que me faz essa pergunta..."

Pedro Aniceto disse...

Kaiten significa "Mudança de céu" o que, convenhamos, é bastante ilustrativo... Quanto às razões das minhas excursões hospitalares, têm a ver com a minha mãe cuja constituição física resolveu agora apresentar a "factura" de alguns partos esforçados.

Ana Ferreira disse...

"e uma revista cor de rosa (não era para mim, tenham dó...)" - DESCULPASSSSS

Anónimo disse...

Interessante, essa introspectiva forma de apelidar de esforçados os partos, vindo de um filho.
Melhoras á Senhora.

Pedro Aniceto disse...

Esforçados sim, e à séria... Pelo menos no meu ficaram marcas quer na mãe quer no filho. E a terceira, aquela que era improvável, acabou por vir e completou o ramalhete clínico. Junte-se isto à idade e terão um retrato fiel.