15 junho 2006

O Poeta

"Restam-lhe poucas horas, Pedro. E quando temos consciência de que nos resta pouco tempo, é como se quiséssemos acertar contas com nós próprios, é um balanço apressado em que há mais deve do que haver...". Estou ali, parado, num corredor de uma clínica à conversa com F. um amigo de sempre. "Já viste alguém morrer?". Confesso-lhe que sim, que por duas vezes isso me aconteceu, uma morte inesperada, outra anunciada e trágica. São coisas em que não penso muito, pelo trauma que me reavivam em ambos os casos. "Chamamos-lhe Poeta, é um homem idoso, tem cerca de 90 anos e é um terminal." F. é um profissional de saúde a trabalhar numa das mais luxuosas e requintadas clínicas de Lisboa, daquelas a que só muito dinheiro pode comprar os serviços prestados. F. zela pelo conforto físico dos que sabem que é tudo uma questão de tempo até que a luz se apague. "É impressionante a dignidade deste homem. Sofre pavores físicos há quase dois anos e nunca lhe ouvi um palavrão, uma ofensa, um insulto. Raramente faz uso da aparelhagem de anestésico. E depois é um poeta, tem sempre um galanteio ao pessoal feminino, vai deixar saudades a muita gente, é uma estrela cá na casa". Anda daí, eu tenho de lá ir acima fazer uma ronda, são só uns minutos já saimos. Estou relutante, já o fiz algumas vezes e saio sempre amachucado, lido muito mal com a morte e acabo por achar que há algo de pegajosamente sinistro nos rostos daqueles que estão condenados. "Mas há pelo menos um equipamento que quero que vejas". Falamos desta maquinaria há dias, sistemas de suporte de vida na área da respiração assistida, equipamentos a que me dediquei profissionalmente durante alguns anos e que me interessam de um ponto de vista técnico. É no quarto do Poeta que está a máquina, um ventilador mecânico de fabrico israelita que mudou muito pouco nos últimos vinte anos. "Trago um amigo comigo, vem ver a sua máquina nova". Os olhos do Poeta estão quase baços, mas levanta um braço em jeito de saudação. F. faz um check list visual à parafernália de material que rodeia a cama. "Não há muito a fazer, verificar níveis de anestésico, rolos de papel das impressoras de batimento cardíaco" Duas ou três rotinas básicas que incluem umas palavras de conforto e o questionar de necessidades, do correcto posicionamento dos comandos de cama e luz ao anestésico. "Ora então uma noite descansada!" diz F. ao Poeta que se agita no leito. Deita a mão à máscara de oxigénio cuja mistura é feita pelo equipamento que apressadamente observei. "Precisa de alguma coisa?" Dou comigo a pensar que mandaria F. ir para certa parte se a frase me fosse dirigida. F. alivia-lhe o elástico que segura a máscara. O Poeta sorri e diz-lhe "Ora, Doutor, deixe-se de aleivosias...". Falemos então de dignidade.

2 comentários:

samaritano sam disse...

_ Interessante "personagem" esse Poeta. Certamente merecedor de um "fim" mais digno de sua "alcunha".

_ Não entendo esta "obsessão" das pessoas em terminarem, conscientemente, os seus dias acamados e/ou "agarrados" a máquinas de hospital/clinicas... Normalmente, para evitar/reduzir a "dor/sofrimento" físico, dizem... Com tantos "narcóticos" à "disposição"; não era preferível terminar num sitio fisicamente bem mais agradável?

...

_ No meu final: Passeando pelo imenso jardim, outrora plantado e acarinhado pelos meus pais e avós... Romântico, não é?!... Mesmo sob o efeito dumas belas "ganzas".

i disse...

Às vezes somos obrigados ao confronto com a morte presente. Evitamos tanto pensar nela, mas de repente descobrimos que mesmo ela, terrível como pode ser, tem suas possibilidades poéticas. Emocionante. Espero poder terminar meus dias viajando pelo mundo. Morrer no meio do deserto, quem sabe, sem ninguém ficar sabendo...