Tinha, no meu arquivo de memórias, o trabalho de Z. como uma das profissões mais aborrecidas do mundo. Z., foi até há alguns anos atrás, produtor dos mais maravilhosamente chatas profissões do mundo e arredores e falo do trabalho de análise estatística de tráfego automóvel na extinta Junta Autónoma de Estradas. Os mais velhinhos lembrar-se-ão de umas cabinas brancas que a JAE colocava em diversos pontos, onde um profissional contratado registava em folhas codificadas o trânsito automóvel, isso mesmo contava carros. Sentei-me uma vez junto a ele (operação deveras difícil que Z. era gordo e o banco mal chegava para ele), e pouco mais resisti que alguns minutos à profunda monotonia quando o trânsito que passava nos 80 centímetros de fresta era raro, ou no ritmo alucinante quando tudo se passava à nossa frente em fracções de segundo. Z. estava no meu top pessoal até ontem à tarde. Quando entrei no 42 rumo a Xabregas, o autocarro desoladoramente vazio despertou-me a atenção. Apenas o motorista e um passageiro, numa posição curisosa, de prancheta com formulário quadriculado na mão e um cartão identificador ao peito. "C.Correia, Auditor", rezava o plástico, uma foto enorme onde o Sr.Correia exibia um farfalhudo bigode que já não estava a compor o lábio superior do próprio. Sentado no banco da frente, C.Correia escrevia em cada linha, correspondente a cada paragem, o número de passageiros que entrava a bordo. Achei-lhe graça no zelo com que numa das paragens do Mercedes saltitante, riscou um número na linha errada e fazendo estalar a língua no palato se entreteve a apagar os algarismos, abstraindo-se de tal modo que nunca mais se lembrou da paragem seguinte. "Três" disse-lhe eu em surdina, ao ver o olhar inquiridor a tentar relevar a distracção. Ele fez-me um aceno de cabeça e desenhou um três na folha com ar de quem está a tomar nota do destino do mundo. Telefonarei a Z. mais tarde, apenas para lhe dizer que os risquinhos dele são muito menos poéticos que os números de C.Correia.
26 outubro 2006
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