18 outubro 2006

Um tiro nos cornos

"Um tiro nos cornos, eu dou-lhe um tiro nos cornos!". O homem que vestia um uniforme castanho estava ali à minha frente, perfeitamente fora de si, olhar intenso, como se fora eu o alvo, ou ele estivesse francamente interessado em acertar com precisão "nos cornos" de quem quer que fosse. Não era obviamente à minha pessoa que a raiva dele queria atingir, claro que não era, não o conheço de lado nenhum a não ser dali, do guichet de onde ele por norma espreita e diz "Boa tarde" a quem lhe diz "Boa tarde" como eu tinha agorinha mesmo acabado de fazer. "O senhor desculpe, não é a si que quero dar um tiro nos cornos...", mais me descansa, lá fora chove torrencialmente e nunca fui de correr no molhado, capaz de partir uma perna ou ainda mais prosaicamente os próprios cornos. "É a minha filha, sabe?" Não, não sei, mas aposto que me vais contar mesmo ainda antes de eu dizer ao que venho. "Pôs os cornos ao marido". É pena, alguém um dia acaba por tomar a iniciativa senão em actos, pelo menos em palavras ou não estivessem os tribunais carregadinhos de omissões. Mea culpa que não perguntei, que nem era preciso, de não ter a curiosidade mórbida de saber quem é quem na história do tiro. "Ele deixava-a andar à balda, sabe? Foi bem feito!". Lição número um, os pais não devem deixar os filhos (ou as filhas) "andar à balda" porque se arriscam a querer matar pessoas com um tiro "nos cornos". "E agora ele quer-lhe ficar com a casa, com o carro e com os móveis!". Não sei e nunca saberei, muito menos os caros leitores que tiveram a desdita de acompanhar esta saga desde o início, a não ser que tenham começado pelo meio, pela parte mais sumarenta e ao mesmo tempo mais rija que é exactamente o corno, porque razão os móveis virão em último lugar do elenco, mas é previsível, quem sabe o caruncho já os atingiu, os minou, tão certinho é como eu estar cheio de pressa para falar com o senhor Z. e sem tempo para escutar o drama de quem quer atingir os "cornos" de outro alguém a quem um dia chamou, aposto, querido genro, uma jóia de moço pois então. Mas é dos livros, ele deixou-a "andar à balda", que é como quem diz "à babugem", a respaldar-se na espuma dos dias, nas frestas do tempo, e saberá Deus em quantos milhares mais de lugares comuns, que sim, é nos lugares mais comuns que começam as grandes traições. "Ah, mas eu dou-lhe um tiro nos cornos!". Seja. Se isso for suficiente para eu falar com Z. que me espera às cinco da tarde, despache lá o assunto, sempre é um só tiro, e como é só um, ainda lhe sobrará um corno, um chavelho, uma haste. Que é muito bem capaz de lhe vir a fazer falta quando precisar de uma alavanca para levantar o móvel da sala, "que só esse me custou quase quinhentos contos". Pelo preço, deve ser boa a madeira. Rija como cornos.

3 comentários:

Anónimo disse...

Boa! Muito boa mesmo.

Posso usar?

(é que tenho aqui uns aprendizes de feiticeiro à mão...)

Pedro Aniceto disse...

Não precisas de pedir, usa e abusa. (Alguém reparou que nos últimos dois dias este blog esteve completamente desformatado e que hoje voltou ao normal sem que eu tivesse tido a mínima intervenção?)

Anónimo disse...

Ia-lhe perguntar se afinal o pai tirano, dava um tiro à filha ou ao genro, mas depois pensei que se ele dava um tiro nos cornos só podia ser ao genro... Isto vida de touro está dificil, pôem-lhe os "troféus" e depois ainda os querem arrancar a tiro.