Ele, o velho, tinha um ar sábio. Não que nós tenhamos sempre a certeza de ter vislumbrado um sábio quando nos cruzamos com ele, pelo contrário, passamos a vida a enganar-nos em relação aos velhos com quem nos cruzamos e temos sadicamente a vaga ideia de que só quando os velhos que conhecemos nos faltam para sempre é que temos a certeza absoluta de que eram mesmo sábios, ironias da vida, negaças e trapaças da morte. Não que eu seja algum especialista a caçar velhos sábios, sou-o tanto quanto vossas mercês, engano-me constantemente, aqui e ali disparo a arma do olhar e quando penso que o pato é gordo sai-me famélico, ossos do observador ofício, santo seja, eu ou o ofício que quanto a isso estará o leitor a pensar que com menos conversa já o escriba teria despachado a introdução num parágrafo e viva o velho. Como vêem a coisa fez-se.
Ele tinha na cabeça um boné de orelhas, lá está, continuamos erradamente a achar que só os velhos e os dementes usam bonés de orelhas, não porque seja velho, lá está, não nos precipitemos porque para precipitação já basta o que cai lá fora, mas precisamente porque lá fora chove que Deus a dá e eu estou aqui a começar a achar que o homem é sábio, não só porque lá fora está escuro como alcatrão fresco mas como também venta o suficiente para eu próprio achar que ter um boné de orelhas neste tempo tem as suas vantagens se excluirmos o ridículo que é ver um sábio de orelhas moucas. Lá está. Minto, lá estamos que somos dois no cenário, o velho que aos meus olhos começa a ser sábio, com o seu boné de orelhas criteriosamente afundado até às ditas, e palavras não eram elas mesmo ditas quando começo a suspeitar que o boné, ele mesmo, estava também ele criteriosamente fixo nas rugas da testa, que de tantas, mais me faziam lembrar os círculos de um tronco de velha árvore que já se não se lembra de quando nasceu.
Ali está ele, dispenso-vos nova viagem ao boné de orelhas, um jornal apertado debaixo do braço do sobretudo grosso, lá está, já quase tenho a certeza da sagacidade do velho, ninguém pouco esperto sai de casa com este tempo em mangas de camisa, agora reparo, aqui estou eu em mangas de camisa atrás de um velho de ar a princípio vagamente sábio mas que aos poucos se vai revestindo de um outro aspecto mais sagaz. Quis esta pequena história que nos encontrássemos numa fila curta, ele e eu, a ordem dos factores não é arbitrária porque ele chegou primeiro, ganhou-me a corrida casuística para a fila da caixa do pequeno café, por meio corpo, talvez por uma pala negra, não tivesse ele um boné enfiado até às orelhas e eu ficaria melhor posicionado no photo finish, é a vida diria qualquer narrador, eu não disse porque não sou velho, pelo menos tão velho e tão sábio que me lembre de dizer ou escrever coisas deste calibre.
O leitor em princípio não vai querer ser maçado com descrições pormenorizadas sobre o pequeno café onde o velho e eu nos encontrámos, na verdade não há muita história para contar sobre o pequeno café, porque abriu hoje, repare bem, no hall de um supermercado sem grande história também ele para contar, e tudo está novo, tudo brilha, da louça nova aos bolos que parecem de plástico com um brilho tão próprio das coisas novas e daí talvez sejam as decorações de Natal que me induzem em erro. Há um Pai Natal em cima da caixa registadora, não tem um barrete enfiado na cabeça, acho o pormenor curioso, deve ser a primeira vez que vejo um Pai Natal em cabelo, forças de expressão que aqui soam estranhas porque não consta que alguma vez alguém tenha visto um fio que fosse da cor do cabelo do Pai Natal que segundo me lembro das imagens da memória é careca e tudo.
Prometi e cumpri, não vai haver descrições maçadoras e pormenorizadas do aspecto do café novo que abriu no hall de um supermercado também ele novo, eu prometi que me não alargaria em descrições pormenorizadas, porém nada disse sobre repetições exaustivas e por aqui me fico quando não chega o Natal e ainda aqui estamos, eu, o velho, o leitor, a menina da caixa registadora modernaça com que ainda não tinha maçado ninguém. Eu podia ter-me despachado mais cedo, é verdade, tivesse eu ganho a corrida da caixa, parecia mal, o respeitinho é muito bonito, verdade é certa que aquele que têm por nós damos-lhe mais valor do que a inversa, mas que diabo, era um velho e a eles devemos alguma consideração e mais contente fico por agora ter a quase a certeza de que é sábio o que salda as contas.
"Uma água natural e uma sandes de pastel de bacalhau, por favor..."
Pronto, agora tenho a absoluta certeza de que se trata de um sábio, eu beberia uma imperial, mas só um verdadeiro sábio sabe o prazer que encerra um pastel de bacalhau aprisionado entre duas fatias de um papo-seco. A menina registou o pedido da água, no luminoso écran da modernaça registadora foi afixado o nome do produto, a marca da água, o preço e mais umas trivialidades de que só os informáticos se lembrariam como o número do item, como se um tipo a morrer de sede ou fome estivesse preocupado em saber se a água era o item um ou dois. A menina da caixa, com as mãos ainda pouco feitas ao teclado da modernaça registadora parecia um maestro no púlpito, parecia dançar, as mãos em trejeitos procuravam as teclas, corriam a lista de códigos, cheguei a pensar que nadava. Mas à beira da praia o dedo morreu-lhe afogado em dúvidas, vi-lhe nos olhos que estava aflita, ali frente ao velho sábio do boné de orelhas
-Não temos sandes de pastel de bacalhau...
O velho, sábio, de boné de orelhas, levantou os olhos para a vitrina e de dedo indicador em riste, num gesto largo apontou uma pirâmide de gulosos pasteis de bacalhau e sem dizer nada cravou os olhos na menina da caixa registadora.
-Quer dizer, temos pasteis de bacalhau e temos pão...
-Então, quero uma sandes de pastel de bacalhau...
Os dedos da menina da caixa dançaram de novo em cima do teclado, os olhos deslizaram pela lista de códigos e aos costumes registou nada, as faces a corarem como tostas mistas mal queimadas, sinais de embaraço, faróis de desespero.
-Não consigo registar uma sandes de pastel de bacalhau...
O velho sábio suspirou sem exagerar na impaciência, eu mudei o apoio de uma perna para a outra, suspirando eu também pelo jeito que me faria uma bengala se o problema se eternizasse.
-Então quero um pão e um pastel de bacalhau...
Voltamos à coreografia já vista do teclado da moderna registadora, ao escorregar sem esperança do dedo pela lista de códigos abaixo, desce o dedo, sobe o dedo, até que levanta em voo em direcção ao velho sábio.
-Pão, só com manteiga...
O velho sábio procurou auxílio, rodou a cabeça, os meus olhos cumprimentaram-no e compreenderam-no, coisa que nem sempre sabemos fazer com o olhar dos velhos.
-Seja! Seja um pão com manteiga e um pastel de bacalhau. Mas tenha o cuidado de se esquecer de barrar a manteiga.
Censurei-o mentalmente. Que não deveria ter sido tão literário, um velho sábio não pode cometer erros tão infantis mesmo que digam que em velhos somos de novo meninos. Mas a menina ainda não parecia disposta a facilitar-lhe a merenda.
-Mas assim o senhor vai ficar prejudicado, porque vai pagar mais pelo pão com manteiga...
O velho, sábio, sorriu. Arrancou da cabeça o boné de orelhas, passou a mão pelas rugas da testa e pagou. Penso que não foi inocentemente que deixou escorregar a mão pela testa, talvez tenha acrescentado mais uma ruga. Pediu-me educadamente desculpa pelo tempo que me tinha feito esperar e enquanto equilibrava o pires com a sandes numa mão, colocou-me a outra sobre um dos meus ombros sussurrando "Agora, meu caro, não tenha a infeliz ideia de pedir uma bica com um cheirinho."
Ele tinha na cabeça um boné de orelhas, lá está, continuamos erradamente a achar que só os velhos e os dementes usam bonés de orelhas, não porque seja velho, lá está, não nos precipitemos porque para precipitação já basta o que cai lá fora, mas precisamente porque lá fora chove que Deus a dá e eu estou aqui a começar a achar que o homem é sábio, não só porque lá fora está escuro como alcatrão fresco mas como também venta o suficiente para eu próprio achar que ter um boné de orelhas neste tempo tem as suas vantagens se excluirmos o ridículo que é ver um sábio de orelhas moucas. Lá está. Minto, lá estamos que somos dois no cenário, o velho que aos meus olhos começa a ser sábio, com o seu boné de orelhas criteriosamente afundado até às ditas, e palavras não eram elas mesmo ditas quando começo a suspeitar que o boné, ele mesmo, estava também ele criteriosamente fixo nas rugas da testa, que de tantas, mais me faziam lembrar os círculos de um tronco de velha árvore que já se não se lembra de quando nasceu.
Ali está ele, dispenso-vos nova viagem ao boné de orelhas, um jornal apertado debaixo do braço do sobretudo grosso, lá está, já quase tenho a certeza da sagacidade do velho, ninguém pouco esperto sai de casa com este tempo em mangas de camisa, agora reparo, aqui estou eu em mangas de camisa atrás de um velho de ar a princípio vagamente sábio mas que aos poucos se vai revestindo de um outro aspecto mais sagaz. Quis esta pequena história que nos encontrássemos numa fila curta, ele e eu, a ordem dos factores não é arbitrária porque ele chegou primeiro, ganhou-me a corrida casuística para a fila da caixa do pequeno café, por meio corpo, talvez por uma pala negra, não tivesse ele um boné enfiado até às orelhas e eu ficaria melhor posicionado no photo finish, é a vida diria qualquer narrador, eu não disse porque não sou velho, pelo menos tão velho e tão sábio que me lembre de dizer ou escrever coisas deste calibre.
O leitor em princípio não vai querer ser maçado com descrições pormenorizadas sobre o pequeno café onde o velho e eu nos encontrámos, na verdade não há muita história para contar sobre o pequeno café, porque abriu hoje, repare bem, no hall de um supermercado sem grande história também ele para contar, e tudo está novo, tudo brilha, da louça nova aos bolos que parecem de plástico com um brilho tão próprio das coisas novas e daí talvez sejam as decorações de Natal que me induzem em erro. Há um Pai Natal em cima da caixa registadora, não tem um barrete enfiado na cabeça, acho o pormenor curioso, deve ser a primeira vez que vejo um Pai Natal em cabelo, forças de expressão que aqui soam estranhas porque não consta que alguma vez alguém tenha visto um fio que fosse da cor do cabelo do Pai Natal que segundo me lembro das imagens da memória é careca e tudo.
Prometi e cumpri, não vai haver descrições maçadoras e pormenorizadas do aspecto do café novo que abriu no hall de um supermercado também ele novo, eu prometi que me não alargaria em descrições pormenorizadas, porém nada disse sobre repetições exaustivas e por aqui me fico quando não chega o Natal e ainda aqui estamos, eu, o velho, o leitor, a menina da caixa registadora modernaça com que ainda não tinha maçado ninguém. Eu podia ter-me despachado mais cedo, é verdade, tivesse eu ganho a corrida da caixa, parecia mal, o respeitinho é muito bonito, verdade é certa que aquele que têm por nós damos-lhe mais valor do que a inversa, mas que diabo, era um velho e a eles devemos alguma consideração e mais contente fico por agora ter a quase a certeza de que é sábio o que salda as contas.
"Uma água natural e uma sandes de pastel de bacalhau, por favor..."
Pronto, agora tenho a absoluta certeza de que se trata de um sábio, eu beberia uma imperial, mas só um verdadeiro sábio sabe o prazer que encerra um pastel de bacalhau aprisionado entre duas fatias de um papo-seco. A menina registou o pedido da água, no luminoso écran da modernaça registadora foi afixado o nome do produto, a marca da água, o preço e mais umas trivialidades de que só os informáticos se lembrariam como o número do item, como se um tipo a morrer de sede ou fome estivesse preocupado em saber se a água era o item um ou dois. A menina da caixa, com as mãos ainda pouco feitas ao teclado da modernaça registadora parecia um maestro no púlpito, parecia dançar, as mãos em trejeitos procuravam as teclas, corriam a lista de códigos, cheguei a pensar que nadava. Mas à beira da praia o dedo morreu-lhe afogado em dúvidas, vi-lhe nos olhos que estava aflita, ali frente ao velho sábio do boné de orelhas
-Não temos sandes de pastel de bacalhau...
O velho, sábio, de boné de orelhas, levantou os olhos para a vitrina e de dedo indicador em riste, num gesto largo apontou uma pirâmide de gulosos pasteis de bacalhau e sem dizer nada cravou os olhos na menina da caixa registadora.
-Quer dizer, temos pasteis de bacalhau e temos pão...
-Então, quero uma sandes de pastel de bacalhau...
Os dedos da menina da caixa dançaram de novo em cima do teclado, os olhos deslizaram pela lista de códigos e aos costumes registou nada, as faces a corarem como tostas mistas mal queimadas, sinais de embaraço, faróis de desespero.
-Não consigo registar uma sandes de pastel de bacalhau...
O velho sábio suspirou sem exagerar na impaciência, eu mudei o apoio de uma perna para a outra, suspirando eu também pelo jeito que me faria uma bengala se o problema se eternizasse.
-Então quero um pão e um pastel de bacalhau...
Voltamos à coreografia já vista do teclado da moderna registadora, ao escorregar sem esperança do dedo pela lista de códigos abaixo, desce o dedo, sobe o dedo, até que levanta em voo em direcção ao velho sábio.
-Pão, só com manteiga...
O velho sábio procurou auxílio, rodou a cabeça, os meus olhos cumprimentaram-no e compreenderam-no, coisa que nem sempre sabemos fazer com o olhar dos velhos.
-Seja! Seja um pão com manteiga e um pastel de bacalhau. Mas tenha o cuidado de se esquecer de barrar a manteiga.
Censurei-o mentalmente. Que não deveria ter sido tão literário, um velho sábio não pode cometer erros tão infantis mesmo que digam que em velhos somos de novo meninos. Mas a menina ainda não parecia disposta a facilitar-lhe a merenda.
-Mas assim o senhor vai ficar prejudicado, porque vai pagar mais pelo pão com manteiga...
O velho, sábio, sorriu. Arrancou da cabeça o boné de orelhas, passou a mão pelas rugas da testa e pagou. Penso que não foi inocentemente que deixou escorregar a mão pela testa, talvez tenha acrescentado mais uma ruga. Pediu-me educadamente desculpa pelo tempo que me tinha feito esperar e enquanto equilibrava o pires com a sandes numa mão, colocou-me a outra sobre um dos meus ombros sussurrando "Agora, meu caro, não tenha a infeliz ideia de pedir uma bica com um cheirinho."
14 comentários:
Ufa finalmente um post suculento, não não tem nada a ver com o facto de a acção se passar num café :), é a escrita que é suculenta.
Ui, tudo o que meta pasteis de bacalhau e croquetes é suculento...
Este é de fôlego... Muito bem escrito.
Podia pedir também uma sandes de "Coma com Pão" com um "Panaché"... Havia de ser bonito.
"Quer-se dizer"- está mesmo a pedir uma leitura jeitosa, não está? Velho sábio em artes da vida (convencer uma menina daquelas não é coisa p'ra putos, só para sábios) merece ainda outra divulgação. Posso, chefe?
Boa. Valeu a pena aguentar a redução na frequencia dos "escritos".
Muito bem! É mais que a conta! Não é só o texto que é bom, a situação é uma delícia, e identifiquei-me bastante com ela.
Sinto-me muitas vezes na pele desse velho de boné de orelhas, a precisar de coisas fora desta nova forma de tirania que é a normalização.
E é aflitivo, não é? A quantidade de pessoas que aceita de bom grado esta normalização e pura e simplesmente apaga da sua forma de existência qualquer criatividade, qualquer livre iniciativa, qualquer coisa que expresse a sua individualidade. Sem se revoltarem, antes pelo contrário, normalizadas é que estão bem, que cansa menos o cérebro, e resta-lhes quando muito uma sombra de infelicidade que às tantas nem conseguem entender de onde vem.
E lutar contra isto, valha-me qualquer coisa, é a empreitada de uma vida!...
Já me puseste com discursos existencialistas logo de manhã, xiça! ;-)
Olá Luís, tu é que sabes meu carom que eu cá "babo-me" sempre... Este saiu compridote, mas o chefe és tu,
Tão bem escrito... tão bonito!
Defeito meu, mas depois de uma história tão cheia de ritmo narrativo (uma delícia!) fico com vontade de mais: pediste a bica com cheirinho?
Não, não pedi, aliás nem é coisa que aprecie particularmente pois acho que estraga as duas coisas.
Oh Daniel. Onde é que se encontram esses "Coma com Pão"? Que saudades tenho de cravar quase diariamente uma tablete dessas à minha mãe.
Quanto ao texto do PA nem vale a pena dizer mais nada. Keep Going.
Kincas, a última vez que vi um "Coma com Pão" foi no "Café Central" em Viseu, em frente do Centro Regional de Segurança Social... Mas já há muitos anos atràs, acho que já desapareceram...
Creio que não desapareceram, a Regina "ressuscitou" algumas marcas na mão da Imperial (se a memória me não falha) e alguns "modelos" já se encontram por aí à venda. Os chapelinhos (ainda há dias comi um) e aqueles com estilhaços de amêndoa. Também já revi o saudoso "Fórmula 1". Penso que foi o Markl que me disse já ter reencontrado o Comacompão (grande nome!).
Oh Kincas, acho que meti água... Estava a confundir o Comacompão com o FlocChoc... Vê o site da Imperial Chocolates que estão lá as marcas "renascidas".
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