(Republicação de uma crónica de 15 de Dezembro de 2003)
É um acontecimento frequente na minha vida. O de, sem nenhum tipo de aviso ou convulsão física, transformar-me em Homem Invisível. Não fico verde, não incho, não me transvisto de super herói com capas ridículas, nem sequer me chamo Robert Bruce.
A verdade é que me sucede muitas vezes. Hoje foi apenas mais uma. Já me habituei a este fenómeno. Já o experimentei em locais tão diferentes como filas para depósito bancário, Repartições de Finanças ou Postos de abastecimento Galp. Acontece-me e pronto, lá prossigo a minha vidinha, contentinho de ainda ninguém me ter atropelado ou enfiado um dedo indicador num olho.
Nunca falei disto publicamente porque não quero que pensem que enlouqueci. Está bem que eu às vezes não demonstro ser possuidor de todas as capacidades que fizeram de mim aquilo que sou hoje, isto é, pouco, mas não suporto a ideia de ser entrevistado nos Telejornais como único português que de quando em vez fica invisível. Ainda por cima nem sequer é original, mas juro-vos que a ideia por detrás do Hollow Man podia muito bem ter sido sugerida por mim.
O episódio da transformação de hoje conta-se em duas ou três linhas. Saí do escritório em busca de Séneca e de Epicuro, dois apanascados filósofos que nem sequer me interessam. Coisas da minha criança, estudante, que de repente se lembrou de que precisava de um livro para resumir. Não interessa para o caso. O que é certo é que de repente fiquei encarregue de encontrar o Séneca e o Epicuro, não importava o custo. Peguei indolentemente nas Páginas Amarelas convicto de que ia ser simples. Fnac. Não há. Citação. Não há. Bulhosa. Não há. Castil. Não há. Bucholz. Não há. Mais uma boa meia dúzia. Não há. Pânico. E agora? Como me safo desta? Uma última chamada já sem nenhuma convicção. Uma voz jovem e aparentemente solícita informa que não têm os títulos. Agradeço a informação. A título de bónus ainda obtenho uma ajuda (que haveria de me salvar do aperto). A Editora Relógio D'Água possui os dois títulos que não consigo encontrar numa única publicação. Abençoada Barata e abençoada funcionária, de quem com muita pena, não guardei o nome, se é que mo disse.
Salto para o Google em busca da Editora. Bingo! Primeiro link, uma loja on line de que não preciso. Tem contactos telefónicos e alguém me atende do lado de lá. Sim, é nosso esse livro. Pode comprar directamente desde que exista em stock. E até há. Suspiro de alívio. Obtenho a morada, salto para dentro do carro e parto em direcção ao Arco do Cego. Rua Sílvio Rebelo número 15. É um bairro tramado para se estacionar (bem) um carro. Nada que um passeio convidativo não resolva. Não me posso demorar. Aqui, os reboques são rápidos.
A Editora, uma pequena vivenda social parece uma orgia livreira. No exterior da pequena casa amontoam-se livros. Salto por entre "A Espuma dos Dias" de Carlos Amaral e Fernando Alves, desvio-me de uma pilha de "A Arma dos Juízes" de Clara Pinto Correia e entro. Tenho de sair imediatamente. Dois homens carregam um caixote gigantesco de onde transbordam mais livros. É normal, penso. É Natal e as encomendas devem ser mais do que muitas.
Volto a entrar. Dou comigo a pensar que em cada pequena pilha, e são dezenas as pilhas amontoadas, estão larguíssimos milhares de Euros em facturação. Deformações profissionais. É uma pequena sala, aquilo que outrora foi o hall da vivenda. Não são mais que dez metros quadrados onde encafuaram 3 secretárias. Os tampos estão cobertos de livros, pastas, dossiers, blocos. Tudo a emoldurar três computadores que emergem mais as respectivas impressoras do meio do dilúvio celulósico.
No meio desta barafunda estão quatro pessoas. Atarefadíssimas. Pronuncio um "Boa Tarde" e não obtenho resposta. Nem um contacto visual. Nada. Permaneço ali no meio das pilhas, interrogando as paredes com os olhos. Um dos presentes percorre afanosamente uma nota de encomenda e parece limitar-se a transferir de um lado para outro avantajados embrulhos e grossas edições embaladas em plástico grosso. Aqui e ali vai riscando no bloco aquilo que penso serem os cumprimentos de encomenda. Perco-lhe o rasto quando ele, ajoujado ao peso de um caixote se desloca para um vão de escada onde continua a sua tarefa. Perco-lhe o rasto e a esperança.
Do outro lado, vasculhando rapidamente um dossier está um outro homem. Com ar de ter mais idade, um ar mais responsável que me inspira alguma fé. É aqui, a olhar para este personagem que me apercebo que já sofri a transformação. Já estou invisível! Como que um sinal divino (e que se não confunda um sinal divino com um divino sinal, que estes últimos só vêm por fibra óptica segundo o que tenho lido...) há uma pilha de "Clones Humanos" de Clara Pinto Correia que me desaba aos pés. Tinha tocado nela inadvertidamente, não na Clara mas nos Clones. Apanho-os displiscentemente. Lentamente refaço a pilha balbuciando desculpas à Clara, desdobrando com os dedos a quina de uma lombada que fica seriamente maltratada.
Não foi suficiente. Ninguém dá por mim e pela minha presença. O ser desfolha mais pastas com ar sapiente e entendedor. Apetece-me chegar perto dele e fazer o costumeiro gesto que nós, os invisíveis, adoramos fazer, o de passar-lhe pela frente dos olhos a palma da mão aberta, quiçá para descrer da nossa própria incredulidade. Deve ser o Contabilista. Dou mentalmente uma estalada na minha própria testa. Qual Contabilista!. A haver semelhante profissão aqui, só poderá ser um Guarda Livros. Sorrio com a minha própria graça. Arrependo-me de sorrir, afinal de contas estou invisível e ninguém vai poder retribuir. E muito menos um homem!
É a minha deixa para examinar a terceira personagem do espaço. Uma mulher. Está ao lado do meu suposto Guarda Livros e parece seguir com atenção o desfolhar de uma outra pasta. Aqui e ali abre a ferragem, tira um documento, emite alguns sons como que a duvidar do que está ver. Hummm? Ahhnnnn? Não fora os pontos de interrogação na moldura das onomatopeias e pareceria a banda sonora de um filme pornográfico. Não levanta os olhos da pasta. O cabelo pende-lhe sobre os papéis não me deixando sequer ver-lhe feições ou movimentos de corpo. Fecha a pasta. Fecha mais uma pasta. Volta-me as costas e decide examinar o dorso de um pesado arquivador. Rodopia da estante na parede para a secretária, sem um golpe de asa, sem levantar o olhar.
Sinto-me quase confortável na minha pele de Homem Invisível. Apetece-me ir lá junto dela e apalpá-la. Apalpá-la não, parece-me demasiado lascivo. Um beliscão serviria o propósito. Contenho-me. Penso no meu carro. O Fiat provavelmente ainda não desenvolveu a capacidade de se tornar invisível, o que no caso dos reboques poderia vir a ser seriamente útil. Não me parece de todo que isso algum dia venha a suceder. Já se escoaram 12 minutos, doze longos e admiráveis minutos em que estive, invisível, a partilhar moléculas de oxigénio com as quatro criaturas, quatro seres que nada mais viram ainda que os seus próprios pés, de tal maneira trabalham curvados sobre o peso da sua responsabilidade. Dedico-me a outra entidade. O quarto ser. Poderia dizer o quarto homem, mas, na realidade não sei se se trata de um homem.
É um ser híbrido, um gobblin que trabalha entalado entre os Contos de Tchekov e os Poemas de Mário de Sá Carneiro. De quem será esta Editora? De Tolkien? Estarei na presença de um Hobbit? Examino-lhe os pés. São normais. De repente fico aflito sem saber como me hei de dirigir caso ele por milagre me dirija a palavra. Minha Senhora? Meu caro? Imagino-lhe a voz aguda a condizer com o ar imberbe. Se for de facto uma mulher é bom que permaneça imberbe. Para seu próprio bem. Não me atrevo agora a mexer-me. Parece haver alguma agitação na sala e não percebo as razões. Passa por mim um sopro de ar frio que vem da porta, porta à qual lanço um olhar. Algo se passa. Descubro rapidamente que já não estou igual. Já não sou invisível. O mundo parece ter recomeçado a girar normalmente. O gobblin chega-se a mim e sem emitir um som, encolhe os ombros. Explico ao que venho. Atrapalho-me na sequência que tinha planeado, a de descrever a chamada telefónica explicando que tinha falado com uma mulher. Talvez tenha sido o gobblin a atender-me o telefone dado que está corado como que apanhado em falta. A outra mulher, no canto oposto da sala continua com o cabelo pendente sobre o trabalho. Ouço-a claramente dizer em tom de comando: "Epicuro, Carta sobre a felicidade, está lá dentro". O gobblin roda sobre os calcanhares e desaparece na sombra de outra sala que se adivinha tão cheia quanto esta. Regressa, estende-me o livro, de novo sem uma única palavra. Da cabeleira pendente sai novo som. "Cinco Euros e quarenta e oito". Estendo o dinheiro, o Gobblin parece contente. Saio. Lá fora há sol e uma carrinha descarrega "O Defunto Elegante" de Luísa Costa Gomes.
É um acontecimento frequente na minha vida. O de, sem nenhum tipo de aviso ou convulsão física, transformar-me em Homem Invisível. Não fico verde, não incho, não me transvisto de super herói com capas ridículas, nem sequer me chamo Robert Bruce.
A verdade é que me sucede muitas vezes. Hoje foi apenas mais uma. Já me habituei a este fenómeno. Já o experimentei em locais tão diferentes como filas para depósito bancário, Repartições de Finanças ou Postos de abastecimento Galp. Acontece-me e pronto, lá prossigo a minha vidinha, contentinho de ainda ninguém me ter atropelado ou enfiado um dedo indicador num olho.
Nunca falei disto publicamente porque não quero que pensem que enlouqueci. Está bem que eu às vezes não demonstro ser possuidor de todas as capacidades que fizeram de mim aquilo que sou hoje, isto é, pouco, mas não suporto a ideia de ser entrevistado nos Telejornais como único português que de quando em vez fica invisível. Ainda por cima nem sequer é original, mas juro-vos que a ideia por detrás do Hollow Man podia muito bem ter sido sugerida por mim.
O episódio da transformação de hoje conta-se em duas ou três linhas. Saí do escritório em busca de Séneca e de Epicuro, dois apanascados filósofos que nem sequer me interessam. Coisas da minha criança, estudante, que de repente se lembrou de que precisava de um livro para resumir. Não interessa para o caso. O que é certo é que de repente fiquei encarregue de encontrar o Séneca e o Epicuro, não importava o custo. Peguei indolentemente nas Páginas Amarelas convicto de que ia ser simples. Fnac. Não há. Citação. Não há. Bulhosa. Não há. Castil. Não há. Bucholz. Não há. Mais uma boa meia dúzia. Não há. Pânico. E agora? Como me safo desta? Uma última chamada já sem nenhuma convicção. Uma voz jovem e aparentemente solícita informa que não têm os títulos. Agradeço a informação. A título de bónus ainda obtenho uma ajuda (que haveria de me salvar do aperto). A Editora Relógio D'Água possui os dois títulos que não consigo encontrar numa única publicação. Abençoada Barata e abençoada funcionária, de quem com muita pena, não guardei o nome, se é que mo disse.
Salto para o Google em busca da Editora. Bingo! Primeiro link, uma loja on line de que não preciso. Tem contactos telefónicos e alguém me atende do lado de lá. Sim, é nosso esse livro. Pode comprar directamente desde que exista em stock. E até há. Suspiro de alívio. Obtenho a morada, salto para dentro do carro e parto em direcção ao Arco do Cego. Rua Sílvio Rebelo número 15. É um bairro tramado para se estacionar (bem) um carro. Nada que um passeio convidativo não resolva. Não me posso demorar. Aqui, os reboques são rápidos.
A Editora, uma pequena vivenda social parece uma orgia livreira. No exterior da pequena casa amontoam-se livros. Salto por entre "A Espuma dos Dias" de Carlos Amaral e Fernando Alves, desvio-me de uma pilha de "A Arma dos Juízes" de Clara Pinto Correia e entro. Tenho de sair imediatamente. Dois homens carregam um caixote gigantesco de onde transbordam mais livros. É normal, penso. É Natal e as encomendas devem ser mais do que muitas.
Volto a entrar. Dou comigo a pensar que em cada pequena pilha, e são dezenas as pilhas amontoadas, estão larguíssimos milhares de Euros em facturação. Deformações profissionais. É uma pequena sala, aquilo que outrora foi o hall da vivenda. Não são mais que dez metros quadrados onde encafuaram 3 secretárias. Os tampos estão cobertos de livros, pastas, dossiers, blocos. Tudo a emoldurar três computadores que emergem mais as respectivas impressoras do meio do dilúvio celulósico.
No meio desta barafunda estão quatro pessoas. Atarefadíssimas. Pronuncio um "Boa Tarde" e não obtenho resposta. Nem um contacto visual. Nada. Permaneço ali no meio das pilhas, interrogando as paredes com os olhos. Um dos presentes percorre afanosamente uma nota de encomenda e parece limitar-se a transferir de um lado para outro avantajados embrulhos e grossas edições embaladas em plástico grosso. Aqui e ali vai riscando no bloco aquilo que penso serem os cumprimentos de encomenda. Perco-lhe o rasto quando ele, ajoujado ao peso de um caixote se desloca para um vão de escada onde continua a sua tarefa. Perco-lhe o rasto e a esperança.
Do outro lado, vasculhando rapidamente um dossier está um outro homem. Com ar de ter mais idade, um ar mais responsável que me inspira alguma fé. É aqui, a olhar para este personagem que me apercebo que já sofri a transformação. Já estou invisível! Como que um sinal divino (e que se não confunda um sinal divino com um divino sinal, que estes últimos só vêm por fibra óptica segundo o que tenho lido...) há uma pilha de "Clones Humanos" de Clara Pinto Correia que me desaba aos pés. Tinha tocado nela inadvertidamente, não na Clara mas nos Clones. Apanho-os displiscentemente. Lentamente refaço a pilha balbuciando desculpas à Clara, desdobrando com os dedos a quina de uma lombada que fica seriamente maltratada.
Não foi suficiente. Ninguém dá por mim e pela minha presença. O ser desfolha mais pastas com ar sapiente e entendedor. Apetece-me chegar perto dele e fazer o costumeiro gesto que nós, os invisíveis, adoramos fazer, o de passar-lhe pela frente dos olhos a palma da mão aberta, quiçá para descrer da nossa própria incredulidade. Deve ser o Contabilista. Dou mentalmente uma estalada na minha própria testa. Qual Contabilista!. A haver semelhante profissão aqui, só poderá ser um Guarda Livros. Sorrio com a minha própria graça. Arrependo-me de sorrir, afinal de contas estou invisível e ninguém vai poder retribuir. E muito menos um homem!
É a minha deixa para examinar a terceira personagem do espaço. Uma mulher. Está ao lado do meu suposto Guarda Livros e parece seguir com atenção o desfolhar de uma outra pasta. Aqui e ali abre a ferragem, tira um documento, emite alguns sons como que a duvidar do que está ver. Hummm? Ahhnnnn? Não fora os pontos de interrogação na moldura das onomatopeias e pareceria a banda sonora de um filme pornográfico. Não levanta os olhos da pasta. O cabelo pende-lhe sobre os papéis não me deixando sequer ver-lhe feições ou movimentos de corpo. Fecha a pasta. Fecha mais uma pasta. Volta-me as costas e decide examinar o dorso de um pesado arquivador. Rodopia da estante na parede para a secretária, sem um golpe de asa, sem levantar o olhar.
Sinto-me quase confortável na minha pele de Homem Invisível. Apetece-me ir lá junto dela e apalpá-la. Apalpá-la não, parece-me demasiado lascivo. Um beliscão serviria o propósito. Contenho-me. Penso no meu carro. O Fiat provavelmente ainda não desenvolveu a capacidade de se tornar invisível, o que no caso dos reboques poderia vir a ser seriamente útil. Não me parece de todo que isso algum dia venha a suceder. Já se escoaram 12 minutos, doze longos e admiráveis minutos em que estive, invisível, a partilhar moléculas de oxigénio com as quatro criaturas, quatro seres que nada mais viram ainda que os seus próprios pés, de tal maneira trabalham curvados sobre o peso da sua responsabilidade. Dedico-me a outra entidade. O quarto ser. Poderia dizer o quarto homem, mas, na realidade não sei se se trata de um homem.
É um ser híbrido, um gobblin que trabalha entalado entre os Contos de Tchekov e os Poemas de Mário de Sá Carneiro. De quem será esta Editora? De Tolkien? Estarei na presença de um Hobbit? Examino-lhe os pés. São normais. De repente fico aflito sem saber como me hei de dirigir caso ele por milagre me dirija a palavra. Minha Senhora? Meu caro? Imagino-lhe a voz aguda a condizer com o ar imberbe. Se for de facto uma mulher é bom que permaneça imberbe. Para seu próprio bem. Não me atrevo agora a mexer-me. Parece haver alguma agitação na sala e não percebo as razões. Passa por mim um sopro de ar frio que vem da porta, porta à qual lanço um olhar. Algo se passa. Descubro rapidamente que já não estou igual. Já não sou invisível. O mundo parece ter recomeçado a girar normalmente. O gobblin chega-se a mim e sem emitir um som, encolhe os ombros. Explico ao que venho. Atrapalho-me na sequência que tinha planeado, a de descrever a chamada telefónica explicando que tinha falado com uma mulher. Talvez tenha sido o gobblin a atender-me o telefone dado que está corado como que apanhado em falta. A outra mulher, no canto oposto da sala continua com o cabelo pendente sobre o trabalho. Ouço-a claramente dizer em tom de comando: "Epicuro, Carta sobre a felicidade, está lá dentro". O gobblin roda sobre os calcanhares e desaparece na sombra de outra sala que se adivinha tão cheia quanto esta. Regressa, estende-me o livro, de novo sem uma única palavra. Da cabeleira pendente sai novo som. "Cinco Euros e quarenta e oito". Estendo o dinheiro, o Gobblin parece contente. Saio. Lá fora há sol e uma carrinha descarrega "O Defunto Elegante" de Luísa Costa Gomes.
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