15 fevereiro 2007

O Sargento M.

Não é segredo que comecei a mexer em máquinas computorizadas por via da minha profissionalização em manutenção de relógios de ponto. Ainda menino agarrava na mala da ferramenta e o meu chefe distribuía serviços simples, de mera afinação correcção e limpeza de equipamentos de controlo horário. Antes de ter a necessária experiência para reparações no cliente, o meu pouso era normalmente a bancada dos Serviços Técnicos onde se ganhava a necessária tarimba para voos mais altos. De quando em vez lá me saía o número premiado com uma deslocação ao Algarve, a Sines ou em plena Lisboa. Conjuntos de relógios sob contrato de manutenção que implicavam uma visita semestral, quanto mais não fosse para lhes soprar o pó, lubrificar e regular. Quando naquela manhã o velho Neves me disse que ia para o Centro Financeiro do Exército, à Estefânea, fiquei contente. Era um parque importante, tinha doze relógios de marcação de ponto, não dos que me agradassem mais, dos electrónicos, mas velhas máquinas completamente mecânicas, já à beira da obsolescência. Não era de recusar, aliás nem o poderia fazer, e garantia-me dois dias de trabalho fora da empresa, e isso por si só representava uns fantásticos setenta escudos de subsídio de almoço, quantia impressionante ainda mais a multiplicar por dois, sendo que em Lisboa eu iria sistematicamente almoçar a casa dado que residia em pleno Marquês de Pombal. Cheguei cedo ao local e procurei o meu contacto, o Sargento M. que rapidamente me perguntou se eu acaso já teria tomado café. Acompanhei-o por mera delicadeza, o café ainda não fazia parte dos meus vícios. "Dê-me cá o relatório que eu assino já a folha de obra." Não percebi. Era absolutamente anacrónico que um cliente quisesse assinar os relatórios de inspecção ainda antes de eu sequer ter visto um relógio que fosse... "Mas eu ainda nem lhes mexi...". "Não importa, eu assino-lhe os papéis, você vai para casa e só volta a aparecer na empresa daqui a três dias... Se alguém telefonar para falar consigo, nós dizemos que anda por aí, ou deixa um número e alguém o avisa...". Fiquei absolutamente baralhado na minha ingenuidade, a proposta não me parecia nada correcta e era contrária a tudo o pouco o que até então tinha feito profissionalmente. O Sargento M. impacientou-se. "Homem, os relógios de ponto não trabalham desde que foram aqui metidos e não é você que quer metê-los agora a trabalhar, pois não?"

6 comentários:

Anónimo disse...

Assim se fez Portugal e… continua a fazer.

kincas disse...

Esse é daqueles que foram presos por causa da manifestação?

Pedro Aniceto disse...

Ui! Aos anos que isto já foi...

Ana Ferreira disse...

Com disciplina militar quem precisa de relógios de ponto?

Anónimo disse...

ai de mim, se dissesse, ou registasse no cadastro, que o carocha gastava menos de 45 aos cem! Já assim vinha de trás!...
O sargendo do parque auto resolvia-me esse problema carregando, ao fim do dia, uns jerricans de gasolina e umas latas de óleo "sobrantes"... e era vê-lo a descer ligeirinho a calçada do quartel de lamego rumo à sua casa, um pouco mais abaixo.
JC

Frederico Lucas disse...

Provavelmente, na empresa, já sabiam que era trabalho arduo!