05 abril 2007

A lata

Nunca gostei de crianças amorfas, moles, desinteressadas. Sempre gostei deles à imagem do que fui, traquinas, irrequieto, incapaz de cair na monotonia e sempre, mas sempre, relutante em aceitar uma resposta vaga, coisa que aliás desesperava a minha mãe e muitos dos professores que tive. Mas de vez em quando as minhas defesas são invadidas pela irreverência infantil e quase me arrependo de os incentivar a serem activos intelectualmente. Lembro-me da autêntica barragem de perguntas a que fui submetido por um aluno de uma escola nas Caldas da Rainha durante duas acções de formação espaçadas de um ano. Talvez tenha sido a segunda pior experiência de Q&A da minha vida. (A primeira foi com uma plateia de jornalistas hostis na Vobis do Colombo, numa altura em que eram muito duras as condições de mercado para a marca que me paga). Hoje à tarde no supermercado, cheguei à caixa ao mesmo tempo que uma avó acompanhada da neta. A miúda não enganava ninguém, bastava olhar para ela para se perceber no olhar e no corpo que estava ali um vulcãozinho à espera de explodir. Munido de poucas compras, a avó acenou-me simpaticamente com a cabeça, fazendo-me sinal que lhe passasse à frente na fila da caixa. A criança, não tendo visto o gesto da avó, não se ficou e enfrentou-me de mãos na cintura e olhos penetrantes. "Olha lá, granda latosa!". Olhei-a divertido, mas ela não me deixou sequer responder. "Tu não sabes que é feio passar à frente das outras pessoas nas filas?". Fiquei incomodado, porque ela não me poupou e eu já tinha muita gente a olhar para mim. A avó, corada como um tomate, tentou explicar-lhe o sucedido. Nenhum efeito! O diabo da miúda defendia a sua razão e eu não estava disposto a tirar-lha. Expliquei-lhe que a avó me tinha deixado passar e meti conversa com ela sobre uns vistosos ovos de chocolate que ela tinha num cesto de plástico. Não foi suficiente. À medida que eu colocava no tapete rolante as minhas compras, ela não conseguiu evitar que transparecesse a sua frustração pelo ocorrido. "Ainda por cima tens dois cestos!". A avó tentou acabar com aquilo, mas foi pior a emenda... "Olha lá, porque é que compras queijo desse? O da Mimosa é muito mais barato!". Senti a avó quase a desfalecer... "Eu peço-lhe desculpa, sabe? É que ela ouve-nos e depois não se esquece de nada...". Já todos nos ríamos, embora a situação estivesse a ser desconfortável. Quando tirei os dois últimos produtos do cesto, aproveitei para lhe dizer "Vês, afinal eram poucas coisas...".
-"PEÚGAS??? COMPRASTE PEÚGAS????"

4 comentários:

Anónimo disse...

Pedro, é por essas e por outras que deixo ao cuidado dos meus melhores amigos, terem filhotes bem educados! E já lá vão... deixa cá ver... uns 5 ou 6!
O maiorzito já terá nos trintas... e é uma excelente pessoa! Fora uma das mais pequenas que hoje tem uns 16, que ela teve A Lata de me dizer, quando tinha 6, OLHOS nos OLHOS, "Sabes JM, Amo-te!"
Sem saber que dizer lhe respondi que era casado... e então não é que a catraia disse "Não faz mal..."?

Anónimo disse...

a situação é deliciosa mas, mais do que isso, é um gosto lê-lo, a si, pela forma como descreve o momento. Visito-o de quando em vez "agarrada" que fiquei á sua prosa, aos seus posts inesperados e à constante capacidade de me divertir! Por estas e por outras, o meu obrigada. Luísa

Pedro Aniceto disse...

Eu é que agradeço a preferência, Luísa. Como ainda há dias conversava com amigos, não e preciso ter-se o Guerra e Paz para escrever, basta-nos ter os olhos abertos ao que se passa à nossa volta.

Anónimo disse...

A simplicidade do seu olhar atento serve de embrulho à sua capacidade de, se houver necessidade, escrever um (outro) Guerra e Paz.
Continuarei assim, agradecida pelo que lhe flui até ao teclado. Luísa