19 maio 2007

Strawberry walls are forever

Turvam-se-me com o tempo as memórias dos sabores. Sei do que me lembro, mas de facto não me lembro do sabor específico. Apenas que era menino e nos interstícios daquela parede cresciam uns morangos silvestres que eu colhia meticulosamente todas as estivais semanas. Éramos pequeníssimos, insignificantes, eu e os morangos, a pedirem a habilidade de voltar um cesto de verga ao contrário para que chegasse aos mais altos, a demorar os fins de tarde e os cortes dos regos do milho regado de fugida. Os dedos afundados no meio das pedras, o medo dos lacraus que era ainda assim menor que a gula da boca, desconte-se um ou outro susto de um grilo ou de um gafanhoto ou a interrupção da colheita ao som de um chamamento da minha mãe. "Pedroooooo!". Tempo, nunca havia tempo entre obrigações e devoções, que os morangos eram muito mais difíceis de encontrar que as amoras, estas últimas quase tão gulosas como as pequenas bolas encarnadas e que me ficavam em caminho no regresso das hortas a caminho de casa. Passar os dedos e a boca pelas águas da fonte, para apagar os pecados e disfarçar uma outra nódoa assassina que me manchasse a pele ou a roupa. Quando há anos me disseram que a parede dos morangueiros tinha desabado, não me preocupei com a parede para desgosto de quem me trouxe a notícia. "Caramba, eu aqui preocupado com a parede e tu com pena dos morangos...". Senti na boca o doce dos frutos, ontem como agora. Quando hoje rodava ao sol um vaso com morangueiros plantados, descobri três pequenos frutos redondos. vermelhos e maduros. Foi com os mesmos dedos, com a mesmíssima gula que os comi. Todas as histórias deviam acabar bem e deixar-nos na boca um sabor que nunca conseguíssemos esquecer. Mesmo que nem sempre nos lembremos do sabor específico.

13 comentários:

Bhixma disse...

Belo texto! Foi com este tipo de reflexões que Proust escreveu o seu célebre romance...

Anónimo disse...

A meu ver, o Pedro não necessita de tais comparações!

Todos sabemos que escreve muito bem!

Já agora quem já leu Proust integralmente na versão original?

Anónimo disse...

Suponho que te referes à parede da Maria dos Anjos, certo?

Pedro Aniceto disse...

Ah, também por lá andaste... ;)

Ana Ferreira disse...

Eu eu... nunca li Proust na íntegra, cruzes ainda bem que o Pedro não escreve como o Marcel
Sobre morangos lembro-me de sempre de os comer quentes, ajudava a colhê-los em casa dos meus tios que tinham um poio deles... nunca percebei porque razão não gostavam da minha ajuda para colher os morangos.... eram tão bonsssss

Anónimo disse...

Sempre que leio estas historietas questiono-me: afinal parece não haver grande diferença entre a vida dos catraios das zonas recônditas do Minho e dos da grande metrópole da capital do País. Pelos relatos do Pedro, as brincadeiras e traquinices eram as mesmas e em cenários idênticos. A única diferença aqui é que os morangos estavam numa parede, enquanto eu os catava nos valados dos rios.
JC

Pedro Aniceto disse...

JC, apesar de eu ser um urbano militante, as minhas raízes e memórias, os meus afectos mais profundos estão num país que já não há (por vezes, ainda bem). Tem a sua piada que cumprido o meu trajecto citadino aos poucos regresse às origens, nem que seja no espartilho de meia dúzia de metros quadrados de terra entalados entre muros suburbanos. Hoje tenho pena de não ter tempo para beber de duas fontes ao mesmo tempo que a vida está-nos constantemente a dizer que não podemos.

Pedro Aniceto disse...

Há um fortíssimo déficit de vírgulas no comentário anterior. As minhas desculpas, mas estou demasiado rpeguiçoso para as corrigir...

Anónimo disse...

Eu também me lembro bem desses morangos silvestres. E da parede onde eles apareciam...no teu tempo eles já sobreviviam entre silvas? É que muitas vezes piquei os dedos na busca por algum moranguito escondido...

Salvo erro, na Lameira também os havia (curiosamente numa parede com uma localização geográfica e de orientação solar muito semelhante... e bem perto de uma larangeira... será apenas coincidência?).

E quanto a sabores, lembro bem as uvas do caminho da fonte (acho que nunca mais comi uvas com aquele sabor), as cerejas das várias espécies que por lá havia, as laranjas da lameira, entre outros...

Pedro Aniceto disse...

Não, não me lembro de haver silvas nessa parede, Mas lembro-me de também os haver no chão, junto do rego de água que seguia pela base dessa parede até lá baixo. Silvas havia (ainda há que eu bem as vi há uma semana) no projecto de parede que segue estrada acima. E dessas silvas apanhei muita amora durante anos a fio... Desconhecia que havia morangos na Lameira, mas lembro-me das laranjas. Mas se queres sabor e texturas desses locais, toma lá dois exemplos: Um pessegueiro que estava (creio que já morreu) ao fundo do tabuleiro do tanque da eira (abaixo do local onde o teu avô plantou gerações de pepinos e tomates) que dava belos pêssegos de roer ( e a mim me deu goma para cola durante anos) e umas ameixas "assassinas" (qual prisão de ventre, qual quê!) de duas árvores do tabuleiro lá de baixo, antes do eucaliptal...

Anónimo disse...

Ai essas ameixas... Uma vez dei um verdadeiro 'malho' de uma das ameixieiras abaixo porque a gula era muita e... ainda faltava apanhar mais uma...

Para tua consolação as laranjas da lameira estão a ser 'reabilitadas'. Um novo inquilino se instalou e está a tratar delas com toda a dedicação. Já hoje comi uma ao almoço. Uma delícia!

Anónimo disse...

... a goma para cola... as coisas de que este homem se lembra...!

Por acaso também usei!

Pedro Aniceto disse...

Não terá sido por acaso, digo eu... (A escola foi a mesma...) ;)