19 junho 2007

O poeta

Chovia. Chovia aquela chuva estupidamente violenta que não nos deixa abandonar o refúgio seguro que conseguimos alcançar. Ali estávamos nós dois, como que presos dentro de um elevador sem que a porta se abra e nos deixe prosseguir as nossas vidas, onde quer que elas, as vidas, nos levem. Ele chegou sacudindo o guarda-chuva como se embainhasse um sabre de cerimónia. Primeiro esticou as varetas desfazendo as dobras do pano preto lustroso, depois com dois dedos espetados, procurou delicadamente a pequena fita que haveria de rodear todo o chapéu e ainda mais delicada e meticulosamente fechou o pequeno clip que haveria de fazer terminar todo o cerimonial. Ali estávamos nós, debaixo do toldo, cada um de nós a pensar no que poderia estar fazendo se não fosse a chuva impertinente. Eu tinha-lhe adivinhado os trejeitos, lia-lhe na fita negra do outro chapéu na cabeça que aquele que ali estava a invadir-me o espaço e a pressa não iria ficar calado. Há algo nos olhos dos que não vão ficar calados que nos avisa da iminência dos acontecimentos, é como se chegassem a transbordar de ansiedade e antes que abram a boca nós sabemos já que estão a deitar por fora e que, sem apelo nem agravo, acabarão por nos salpicar. "Freguês, vai uma cautela branca?". Que não, ainda por cima branca. "De certeza?" De certeza, não sou jogador. "Não me minta, eu vejo-lhe nos olhos que gosta de jogar...". E gosto, pensei eu, mas nem sei porquê porque a fortuna ao contrário do velho, não me costuma sorrir. "Pronto, não quer, não quer, não será por isso que não deixamos de ser amigos...". Logo eu que nem sabia que era seu amigo, mas pronto, convencionemos que sim, que o somos, quanto mais não seja até parar de chover. "Fui guarda da Praça de Touros do Campo Pequeno durante vinte e cinco anos!". Que sim, que fora bem guardada, que ainda hoje lá estava e ninguém a tinha levado. "E sou poeta!". Fiquei sem resposta, ninguém está preparado para encontros de poesia debaixo de um toldo e chove que Deus a dá. "E sou feliz, veja lá!". Bom para si. "Recebi o meu quando fecharam o Campo Pequeno para obras e pirei-me. Agora vendo jogo e não sou menos feliz. Tenho tempo para a poesia". Acendi um cigarro. "E vejo nos olhos das pessoas quando elas são jogadoras". Comprei o diabo da cautela. Era branca, nada de novo.

3 comentários:

Anónimo disse...

...nada de novo...prosa da boa outra vez!

Pedro Aniceto disse...

O que me vale é a família! :) Abraço

Cleopatra disse...

Os poetas são assim...Conseguem que os outros comprem o que não existe!