08 julho 2007

Até ao almoço, camaradas?


Quando a pressão imobiliária me convidou a abandonar Lisboa, os meus pais mudaram-se para as cercanias de Sacavém, naquilo que então era um matagal pintalgado por algumas oliveiras e onde hoje é difícil descortinar um palmo que não esteja tomado pela construção. Sacavém era, no início dos anos oitenta, uma das pontas decrépitas da Cintura Industrial de Lisboa e por ali se concentravam algumas indústrias com as quais o tempo foi implacável e a gestão dos homens desleixada. Havia um pólo industrial que resistia, um dos últimos bastiões do Partido Comunista Português, que controlou politicamente até ao final da respectiva existência e que foi por diversas vezes primeira página de jornal, e quase nunca pelas melhores razões. Estou a falar da extinta Fábrica de Louças de Sacavém que ocupava uma generosa área entalada entre a linha do Norte e a Estrada Nacional 10 e onde hoje está instalado um complexo imobiliário. A Fábrica de Sacavém foi fundada em 1856 por Manuel Joaquim Afonso acabou por ser desmantelada e extinta no início dos anos oitenta, restando apenas o chamado "Forno 18" em redor do qual se ergueu um centro museológico, que foi aliás em 2000 distinguido pela Unesco e cuja visita recomendo. As louças de Sacavém foram-me familiares muitíssimo antes de ter ido para lá morar. A minha infância está repleta de imagens dos pratos da casa do meu avô, os famosos "pratos do cavalinho", imagem essa que deve ser comum a milhares de outros portugueses. Pouquíssimos dos leitores destas páginas deverão recordar-se dos "gatos num prato", e não, não estou a falar de imagens de memória, mas sim de uma técnica de recuperação de louça rachada, em que um latoeiro (?) furava a cerâmica em dois pontos adjacentes à quebra e passava um arame (o gato), permitindo assim manter a uso uma peça que à época não era absolutamente nada descartável. Estou certo de que alguns ainda existirão lá por casa, nem que sejam como peças cuja afectividade as salvou da perda completa. A estampagem do motivo do cavalinho apoiado nos quartos traseiros vai persistindo, já vi outros fabricantes recuperarem o raio do desenho rebuscado (não era apenas o cavalo, mas uma profusão de motivos vegetais que rodeava o centro do prato como poderão ver na imagem acima) e não me custa lembrar-me da minha tia Lourdes dizer-me que a refeição só estaria acabada "quando se visse o cavalinho"... Quando hoje a minha mãe me disse que tinha duas peças de louça de Sacavém para me oferecer, lembrei-me de imediato do cavalinho e das favas da Maria de Lourdes. Mas ao ver-lhe a ironia no olhar e o ar sarcástico com que me deu a notícia, fiquei ainda mais curioso. Não duvido que se tratem de duas peças raríssimas e estou capaz de perguntar ao Museu da Cerâmica se têm no seu espólio estas pérolas do período revolucionário em curso (in ilo tempore). Quando as desembrulhei dos papeis que as envolviam, também eu não pude deixar de sorrir...

7 comentários:

botinhas disse...

Agora só falta arranjar umas criancinhas e servir ao pequeno-almoço!

João Tiago disse...

olha...
Apesar de tudo eu gosto, mto : )

joão calviño

Anónimo disse...

Pressão imobiliária ... o nosso calvário .Mais o lucifer da banca.
Portugal a saque.Terciar o cidadão .O escravo.

blimunda sete luas disse...

Atenção, Pedro, tenho ouvido dizer que quem os serviços completos da Fábrica de Sacavém, estão hoje em dia a valer um bom dinheiro.

Quanto a estas relíquias já não sei, mas também têm todo o ar de peças de museu, de moldes que devem ter o seu valor! ;-)

A pressão imobiliária ali não foi má de todo, acho que o espaço é muito agradável, a urbanização dá cólidade de vida às pessoas que têm dinheiro para pagar as casas.

Luís Maia disse...

Recordas-me que nesse período revolucionário trabalhei, noutro polo PCP. a Trefilaria, se bem te lembras dela, hoje extinta a bem da saúde liquida do Trancão.
Lembro-me bem dos pratos do cavalinho o outro achas que não haverá à venda na Festa do Avante ?

Pedro Aniceto disse...

Blimunda: Desde que vi um catálogo com um escarrador Sacavém de 1900 a 1000 euros que acredito em tudo...

Pedro Aniceto disse...

Maia: Hei-de andar atento às peças da Atalaia. Uma canequinha estalisnista, uma ceifeira de barro, mas pratinho vermelho Brezhnev ainda não lobriguei...