Trespassada a porta da casa de banho da área de serviço da Auto Estrada, e quando um homem por ela adentra pressionado por compulsões fisiológicas - principalmente nesses casos - não há tempos para a poesia, para o romance ou para a arte. Não há tempo para a fruição do espaço, muito menos da eventual companhia e era, garanto-vos, coisa que não faltava num Sábado de manhã com meio país a voar para sul, num dia de ar abafado ao qual podem adicionar a claustrofobia dos secadores de mãos em pleno funcionamento. Quando o espaço é uma casa de banho partilhada por múltiplos seres, personagens efémeros dos nossos episódios rodoviários e se tem apenas um objectivo em mente, não se poderá nunca pedir a um cérebro que registe para a eventual utilização em memória futura do que quer que seja, por menor que seja a pinga, ironia implícita, o fotograma, o som ou o sentimento. Todos os presentes estão ali com dois objectivos, o alívio, o alívio, não sei se já disse, o alívio e pisgarem-se, escapulirem-se, darem às de Vila-Diogo (um dia falaremos disto, tá?) dali para fora, Por isso, só e apenas quando chegou a minha vez de dar vazão ao meu problema mais premente, e quando fazemos, os meninos, aquele ar de esgazeamento físico, mistura de prazer e sofrimento em que os humanos se tentam alhear do mundo e dos seus companheiros de parto líquido, foi aí, foi algures por aí que recuperei o tino e o sentido do mundo.
Éramos quatro, podíamos ter sido cinco se acaso aprouvera à equipa da manutenção a libertação do quinto vaso branco que estava vestido de negro e tinha ao pescoço uma tabuleta manuscrita que informava estar aquele alvo buraco fora de serviço, apertem-se pois, que só há quatro. Quando recuperei os sentidos em termos funcionais e me chegaram aos ouvidos os primeiros sons de que me consegui aperceber enquanto recuperava também o fôlego, foram as envolventes notas de Michael Nyman. Sorri. Sorri porque eu sei, cá de dentro, como me arrepio (eu que me arrepio por tudo e por nada), com melodias bem tocadas ao piano. Dentro de mim há um pianista morto, só pode estar morto, a quem me parece de quando em vez ver-lhe mexer um braço, não é nada, impressão tua, quando um acorde, uma nota, um timbre, me faz sonhar com ondas e praias e se nunca mergulharam numa onda enorme mas serena que nos acolha e transporte no seu lombo com Michael Nyman nos ouvidos, é porque nunca experimentaram nada e não pensem que o alívio de que escrevia há pouco é coisa que lhe compare. Voltemos à posição rígida do narrador, pernas abertas, mãos ocupadas, a tentar fazer mover as bolinhas de naftalina no fundo da cerâmica (mais uma grande invenção da humanidade que nunca verá o respectivo mérito reconhecido) com vontade de trautear Nyman, mas não que pode parecer mal. Parece mal lá agora, quero lá bem saber, quem me acompanha pode até não saber quem é o músico, se é que o ouve no meio de tanto ruído marginal.
São família os três companheiros de mictório. Discutem entre si, melhor, dialogam entre si, sobre se devem ou nao almoçar já, ali, no restaurante da área de serviço. O pai queixa-se dos preços, pudera, parece ser quem vai pagar, os filhos tentam convencê-lo de que é melhor, lá em baixo é mais caro oh pai, é melhor ser já aqui. Estou quase a dizer-lhes que quando virem o tamanho da fila do Self Service desistem logo, eu só estou nesta casa de banho porque já desisti das duas anteriores, o que não deu bom resultado porque o problema foi piorando... Estamos na fase terminal da função, eu sacudo o que tenho para sacudir, há quem já o tenha feito mas fique ali preso, nem o pai mija nem a gente almoça, eu trauteio mentalmente, o diabo do Nyman tem em mim este condão. O pai está claramente indeciso enquanto lavamos as mãos, melhor, eles lavam eu seco. E estamos neste interim, nesta parte do tem-te não caias, com licença, faz favor, desculpe, pisei-o, ora essa, faz favor de passar, oh meu amigo, por quem sois (pelo Benfica, ora!), quando se ouve uma descarga de água num dos compartimentos reservados de qualquer olhar. Da porta emerge a figura enchapelada de um cozinheiro que passa apressadamente no meio de todos nós. A mola da porta não evita que esta bata com estrondo, lá se foi a farfalhuda figura do cozinheiro que, sendo humano, também tem aflições. "Oh pai, é melhor comermos no Algarve..." diz o filho ao pai que impaciente lhe diz que ele que se decida, que diabo, ainda agora queria comer, já te passou a fome? Abro a porta para sair com Nyman ainda a tocar-me nos ouvidos e nos sentidos. "Oh pai, ele não lavou as mãos!". Sinto o riso a crescer, como uma onda que me ergue e me transporta no lombo.
Éramos quatro, podíamos ter sido cinco se acaso aprouvera à equipa da manutenção a libertação do quinto vaso branco que estava vestido de negro e tinha ao pescoço uma tabuleta manuscrita que informava estar aquele alvo buraco fora de serviço, apertem-se pois, que só há quatro. Quando recuperei os sentidos em termos funcionais e me chegaram aos ouvidos os primeiros sons de que me consegui aperceber enquanto recuperava também o fôlego, foram as envolventes notas de Michael Nyman. Sorri. Sorri porque eu sei, cá de dentro, como me arrepio (eu que me arrepio por tudo e por nada), com melodias bem tocadas ao piano. Dentro de mim há um pianista morto, só pode estar morto, a quem me parece de quando em vez ver-lhe mexer um braço, não é nada, impressão tua, quando um acorde, uma nota, um timbre, me faz sonhar com ondas e praias e se nunca mergulharam numa onda enorme mas serena que nos acolha e transporte no seu lombo com Michael Nyman nos ouvidos, é porque nunca experimentaram nada e não pensem que o alívio de que escrevia há pouco é coisa que lhe compare. Voltemos à posição rígida do narrador, pernas abertas, mãos ocupadas, a tentar fazer mover as bolinhas de naftalina no fundo da cerâmica (mais uma grande invenção da humanidade que nunca verá o respectivo mérito reconhecido) com vontade de trautear Nyman, mas não que pode parecer mal. Parece mal lá agora, quero lá bem saber, quem me acompanha pode até não saber quem é o músico, se é que o ouve no meio de tanto ruído marginal.
São família os três companheiros de mictório. Discutem entre si, melhor, dialogam entre si, sobre se devem ou nao almoçar já, ali, no restaurante da área de serviço. O pai queixa-se dos preços, pudera, parece ser quem vai pagar, os filhos tentam convencê-lo de que é melhor, lá em baixo é mais caro oh pai, é melhor ser já aqui. Estou quase a dizer-lhes que quando virem o tamanho da fila do Self Service desistem logo, eu só estou nesta casa de banho porque já desisti das duas anteriores, o que não deu bom resultado porque o problema foi piorando... Estamos na fase terminal da função, eu sacudo o que tenho para sacudir, há quem já o tenha feito mas fique ali preso, nem o pai mija nem a gente almoça, eu trauteio mentalmente, o diabo do Nyman tem em mim este condão. O pai está claramente indeciso enquanto lavamos as mãos, melhor, eles lavam eu seco. E estamos neste interim, nesta parte do tem-te não caias, com licença, faz favor, desculpe, pisei-o, ora essa, faz favor de passar, oh meu amigo, por quem sois (pelo Benfica, ora!), quando se ouve uma descarga de água num dos compartimentos reservados de qualquer olhar. Da porta emerge a figura enchapelada de um cozinheiro que passa apressadamente no meio de todos nós. A mola da porta não evita que esta bata com estrondo, lá se foi a farfalhuda figura do cozinheiro que, sendo humano, também tem aflições. "Oh pai, é melhor comermos no Algarve..." diz o filho ao pai que impaciente lhe diz que ele que se decida, que diabo, ainda agora queria comer, já te passou a fome? Abro a porta para sair com Nyman ainda a tocar-me nos ouvidos e nos sentidos. "Oh pai, ele não lavou as mãos!". Sinto o riso a crescer, como uma onda que me ergue e me transporta no lombo.
6 comentários:
Excelente, meu.
Este está a jeito para o Lugar aos Outros, carago!
Confesso que me delicio com Nyman, mas nunca tinha pensado juntar o util ao agradavel no sentido descrito (sem bem que o util aqui foi realmente agradavel).
Quanto ao cozinheiro, tenhamos esperança que tenha um lavatorio na cozinha com um desinfectante especial onde se dirigem antes de prepararem o "pasto"... (sim, sou muito crente).
Muito boa escrita! Fartei-me de rir à conta desta "pulga"!
Caro primo, isto de te dares à escrita desta forma tem que se lhe diga, que eu acho que nunca te tratei assim..., mas voltemos ao caro, tens de contar como é que fazes isto. Já sei que tens uma memória fantástica mas... gravas o discurso? escreves à pressa quando entras no carro ou remoes, verbo interessantíssimo este, a coisa lentamente?
Caro primo (ora toma!): Tenho três métodos, qual deles o mais estranho... Método A) Um caderninho onde tomo uma nota curta, bastas vezes indecifrável se passar muito tempo. Neste caso um singelo "fui mijar". A coisa estava fresca e foi fácil. mas já deitei fora notas de coisas de que sou incapaz de me recordar. Método B) Uma nota (necessariamente também sintética) no primeiro papel que apanhar a jeito. Os recibos da Brisa não prestam porque têm nas costas a impressão do logótipo. Bons são os recibos de farmácia ou as contas quilométricas do Carrefour. Método C) Gravador. Bom para viagens longas em estrada onde há tempo para "verter" (isto sim, isto é que é um verbo!) o texto quase na íntegra.
Luís Gaspar: Mas tu não estavas de férias? :) Obrigado pela preferência. Acharias demasiado abuso que eu te desse umas notas de "realizador" sobre algumas inflexões que gostaria de ouvir nestas palavras?
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