Escreveu-me o Acácio Jeremias, queixando-se que tinha perdido trinta minutos à procura, dentro deste blog, de um texto meu, já algo antigo, "sobre um gajo que pintava placas". O texto, que nunca esteve neste blog, intitula-se "O Pintor de Letreiros" e foi uma crónica publicada no iClub há já alguns anos. Desse texto, fez o Luís "Estúdio Raposa" Gaspar, uma gravação, incluída no Podcast "Lugar aos outros". O texto fica abaixo, e o áudio pode ser descarregado aqui. Permita-me apenas uma sugestão: Ouça a gravação do Luís Gaspar, que deu a este texto uma vida que ele nunca teve, e depois, se ainda achar necessário, leia então o texto.
Pintor de letreiros. Era assim que designava a sua própria profissão desde que o pai o deixara iniciar-se na, por vezes, tão pouco apreciada arte dos pincéis e das letras. Mais tarde, por força de uma inspecção fiscal, passaria a identificar-se nos recibos como "Publicista", mas apenas por força das multas e coimas que levou anos a pagar. Eram já 60 anos de letras, um Curso de Letras como chalaceava com amigos e clientes quando, em amena cavaqueira recapitulava as lides de uma vida feita de cores ora garridas, ora sóbrias, ora ainda de meias tintas quando o trabalho assim o exigia. Solteirão empedernido por escolha de outras ou pela falta delas, as outras e as escolhas, capaz de imaginar soluções artísticas para poemas de amor pintados (sempre pintados), dizia-se ainda "capaz de molhar o pincel" em obra alheia, que isso lhe chegava, dizia ele, para "desenferrujar a trincha". Uma vida feita de letreiros que meio país via aqui e ali, fossem eles feitos à torreira do sol pelo andaime encostado à empena, ou no escuro de uma cave sombria de um "Bar Dancing". Letras, muitas letras, muito risco traçado em paredes a quem, ao contrário do fado, sempre foi confessando algumas coisas. Restaurantes, Bares, Drogarias, Capelistas, Adegas, Mercearias e até uma Igreja, meros exemplos de uma miríade de pequenos anúncios que só a sua memória prodigiosa arquivara. Capaz de recordar uma rosa traçada há cinquenta anos na esquina da 24 de Julho com a Vieira da Silva, ou o sorriso trocista de um Jolly Jumper na casa de alterne da Mouraria. Capaz de recordar a rapidez com que escrevia "Snake Bar" quando lhe explicaram que não era assim, que não era "Snake", e que havia agora que redimensionar a palavra para a grafia correcta, gesto que fazia de uma só penada, 3 riscos, o lápis sacado de trás da orelha e um "Snack" que nascia, com ésses floreados e um risco no meio da curva contra-curva, capaz de identificar o autor da obra entre os poucos mestres da arte que ainda sobravam no mercado.
Fora grande. Muito grande. Até fora a Espanha desenhar sobre as paredes brancas da escadaria de um infantário um imenso comboio a quem chamaram Maria Vanilla. Obra grande, obra enorme, no tempo e no gasto, a fazê-lo subir e descer os degraus sem fim, primeiro por necessidade, depois por desejo, que as educadoras chegavam-se à balaustrada para o ver trabalhar e escapavam-lhe os olhos para as pernas torneadas ou para uma liga mais descuidada. Teve de trabalhar à noite, "quando não, o comboio nunca mais chegava" e as dores no pescoço e noutras partes não paravam de o atormentar. Trouxe de Espanha um molho de notas e uma doença venérea, sendo que as notas desapareceram muitíssimo mais depressa que a comichão. Sobrevieram crises, governos cairam sendo que alguns nunca se levantaram, ele sabia que os tempos não eram fáceis quando as encomendas de letreiros "Vende-se pela urgência" eram mais do que a capacidade dos seus dedos em pintá-los. Anos houve em que decidiu produzir em massa este tipo de peças, anos houve em que pintou cinco sem nunca conseguir armazenar nenhum, sempre eram 5 contos em meia dúzia de pinceladas a azul moiré como dizia na lata. Azuis são azuis, claros ou escuros, paneleirices de quem faz tintas, se tivessem de pagar a alguém o que escrevem nas latas viam logo que azul sozinho era muito mais barato. Sobrevieram ataques à arte. Primeiro anúncios luminosos. Letras retorcidas num tubo de vidro com luz que nunca compreendeu e que perante as quais se sentia demasiado velho para tentar perceber. E muito menos o conseguia quando lhe diziam que valia a pena comprá-los que a luz chama os clientes. "Oh, se a Luz chamasse os clientes o Estádio estava sempre à cunha" e todos nós, infelizmente sabemos que nem sempre assim é, para gáudio de outros azuis. A verdade é que chamavam, a verdade é, desenhadinha aqui mesmo nesta folha, que os clientes pagavam dez vezes mais sem refilar por um "Adega do Marcelino" em roxo fluorescente do que por um arabesco e um A capitulado. E nunca percebeu porquê, que a lindeza de um A capitulado não se comparará nunca a uma curva de vidro manhoso, capaz de se partir se se ler com muita força.
Mais tarde foram os cafés a abandoná-lo. Toldos de plástico com letrinhas muito bem desenhadas, sempre a branco que aqueles gajos não conhecem outra cor. Até lhe custou a acreditar que alguém conseguisse pintar linhas tão certinhas, que com 50 anos de riscos apostaria um braço que era quase impossível mesmo que usasse fitas. E lembrava com saudade o dia em que pintara uma linha finíssima sobre o negro do alcatrão da estrada da vila, com quatro singelas letras brancas e nenhuma ficara tão perfeita como estas que agora via no toldo do supermercado. Também nunca Joaquim Agostinho haveria de cruzar de bicicleta as finas letras do toldo, levando agarrado às rodas umas manchas brancas de tinta aguada, nem o povo em correria haveria de espezinhar (sem querer, claro) a palavra META, criteriosamente desenhada ao sabor das lombas do alcatrão. Explicaram-lhe que as letras certinhas não eram pintadas, eram cortadas em plástico fino e colante. Máquinas que faziam sozinhas o trabalho de dez homens que podiam bem passar o tempo de descaricar uma sameira a uma Sagres média por homem e não dava tempo nem para mais uma Mini... Foram momentos difíceis, muito difíceis, com o trabalho cada vez mais escasso e a falta de vista a aumentar. Faltava-lhe a vista e a paciência. Sobretudo quando percebeu que os clientes começavam a pedir-lhe tarefas demasiado complicadas. Traziam letras diferentes das que sempre fizera. Chamavam-lhes nomes esquisitos. Chamavam-lhes "fontes", disparates, que fontes são sítios onde se vai à água e letras só há duas, as minhas e as da motoreta que o Banco me faz pagar todos os meses.
A verdade é que a corrida estava perdida. A verdade é que até o neto chegava ao computador e o desafiava para fazer letras tão bonitas como aquelas. Sem o reconhecer, aceitava-o. Sem o saber, o neto desenhava o destino do avô. Passava meses sem pintar uma vírgula que fosse, e se ele gostava de vírgulas, era altura em que puxava o corpo atrás e apreciava o trabalho, a altura em que do bolso das calças saía o lenço para primeiro limpar da testa o suor e depois corrigir alguma imperfeição que pingasse descuidada. A vida deixara de fazer sentido e todos os dias se convencia disso um pedacinho mais. Alguém lhe telefonara para o café do lado com uma encomenda. Nem isso hoje o animara, que acordara tão sombrio como o tempo e nem uma festa ao gato fizera. Luís Zorro - Fábrica de Calçado. Esta era das fáceis, ainda por cima para pintar em vidro, coisa de que também sempre gostara, mas que não era para todos, é fácil um homem distrair-se a ver a vida ao contrário. Assim sendo o melhor era começar já, que depois vai-se embora o sol e já lhe custará mais. Assentou delicadamente a placa de vidro em cima da bancada e traçou as primeiras linhas. Depois parou, olhou o tecto e as traves do telhado em pormenor. Procurou no fundo de um caixote de plástico uma corda grossa que em tempos o ajudara a subir e descer andaimes. Atirou-a ao ar e ela passou certinha no local escolhido. Deu a laçada que tudo resolveria e experimentou o nó. Espreitou uma última vez a luz que inundava a bancada pela janela pequenina do sótão. Desceu as escadas e pintou uma placa sublime, talvez a mais bonita de sempre, pelo menos assim lhe parecia que não é fácil escolher-se um filho favorito. Não tinha o Z ao contrário, é importante. Subiu a escada sem esforço e de corda ao pescoço deixou-se cair.
Pintor de letreiros. Era assim que designava a sua própria profissão desde que o pai o deixara iniciar-se na, por vezes, tão pouco apreciada arte dos pincéis e das letras. Mais tarde, por força de uma inspecção fiscal, passaria a identificar-se nos recibos como "Publicista", mas apenas por força das multas e coimas que levou anos a pagar. Eram já 60 anos de letras, um Curso de Letras como chalaceava com amigos e clientes quando, em amena cavaqueira recapitulava as lides de uma vida feita de cores ora garridas, ora sóbrias, ora ainda de meias tintas quando o trabalho assim o exigia. Solteirão empedernido por escolha de outras ou pela falta delas, as outras e as escolhas, capaz de imaginar soluções artísticas para poemas de amor pintados (sempre pintados), dizia-se ainda "capaz de molhar o pincel" em obra alheia, que isso lhe chegava, dizia ele, para "desenferrujar a trincha". Uma vida feita de letreiros que meio país via aqui e ali, fossem eles feitos à torreira do sol pelo andaime encostado à empena, ou no escuro de uma cave sombria de um "Bar Dancing". Letras, muitas letras, muito risco traçado em paredes a quem, ao contrário do fado, sempre foi confessando algumas coisas. Restaurantes, Bares, Drogarias, Capelistas, Adegas, Mercearias e até uma Igreja, meros exemplos de uma miríade de pequenos anúncios que só a sua memória prodigiosa arquivara. Capaz de recordar uma rosa traçada há cinquenta anos na esquina da 24 de Julho com a Vieira da Silva, ou o sorriso trocista de um Jolly Jumper na casa de alterne da Mouraria. Capaz de recordar a rapidez com que escrevia "Snake Bar" quando lhe explicaram que não era assim, que não era "Snake", e que havia agora que redimensionar a palavra para a grafia correcta, gesto que fazia de uma só penada, 3 riscos, o lápis sacado de trás da orelha e um "Snack" que nascia, com ésses floreados e um risco no meio da curva contra-curva, capaz de identificar o autor da obra entre os poucos mestres da arte que ainda sobravam no mercado.
Fora grande. Muito grande. Até fora a Espanha desenhar sobre as paredes brancas da escadaria de um infantário um imenso comboio a quem chamaram Maria Vanilla. Obra grande, obra enorme, no tempo e no gasto, a fazê-lo subir e descer os degraus sem fim, primeiro por necessidade, depois por desejo, que as educadoras chegavam-se à balaustrada para o ver trabalhar e escapavam-lhe os olhos para as pernas torneadas ou para uma liga mais descuidada. Teve de trabalhar à noite, "quando não, o comboio nunca mais chegava" e as dores no pescoço e noutras partes não paravam de o atormentar. Trouxe de Espanha um molho de notas e uma doença venérea, sendo que as notas desapareceram muitíssimo mais depressa que a comichão. Sobrevieram crises, governos cairam sendo que alguns nunca se levantaram, ele sabia que os tempos não eram fáceis quando as encomendas de letreiros "Vende-se pela urgência" eram mais do que a capacidade dos seus dedos em pintá-los. Anos houve em que decidiu produzir em massa este tipo de peças, anos houve em que pintou cinco sem nunca conseguir armazenar nenhum, sempre eram 5 contos em meia dúzia de pinceladas a azul moiré como dizia na lata. Azuis são azuis, claros ou escuros, paneleirices de quem faz tintas, se tivessem de pagar a alguém o que escrevem nas latas viam logo que azul sozinho era muito mais barato. Sobrevieram ataques à arte. Primeiro anúncios luminosos. Letras retorcidas num tubo de vidro com luz que nunca compreendeu e que perante as quais se sentia demasiado velho para tentar perceber. E muito menos o conseguia quando lhe diziam que valia a pena comprá-los que a luz chama os clientes. "Oh, se a Luz chamasse os clientes o Estádio estava sempre à cunha" e todos nós, infelizmente sabemos que nem sempre assim é, para gáudio de outros azuis. A verdade é que chamavam, a verdade é, desenhadinha aqui mesmo nesta folha, que os clientes pagavam dez vezes mais sem refilar por um "Adega do Marcelino" em roxo fluorescente do que por um arabesco e um A capitulado. E nunca percebeu porquê, que a lindeza de um A capitulado não se comparará nunca a uma curva de vidro manhoso, capaz de se partir se se ler com muita força.
Mais tarde foram os cafés a abandoná-lo. Toldos de plástico com letrinhas muito bem desenhadas, sempre a branco que aqueles gajos não conhecem outra cor. Até lhe custou a acreditar que alguém conseguisse pintar linhas tão certinhas, que com 50 anos de riscos apostaria um braço que era quase impossível mesmo que usasse fitas. E lembrava com saudade o dia em que pintara uma linha finíssima sobre o negro do alcatrão da estrada da vila, com quatro singelas letras brancas e nenhuma ficara tão perfeita como estas que agora via no toldo do supermercado. Também nunca Joaquim Agostinho haveria de cruzar de bicicleta as finas letras do toldo, levando agarrado às rodas umas manchas brancas de tinta aguada, nem o povo em correria haveria de espezinhar (sem querer, claro) a palavra META, criteriosamente desenhada ao sabor das lombas do alcatrão. Explicaram-lhe que as letras certinhas não eram pintadas, eram cortadas em plástico fino e colante. Máquinas que faziam sozinhas o trabalho de dez homens que podiam bem passar o tempo de descaricar uma sameira a uma Sagres média por homem e não dava tempo nem para mais uma Mini... Foram momentos difíceis, muito difíceis, com o trabalho cada vez mais escasso e a falta de vista a aumentar. Faltava-lhe a vista e a paciência. Sobretudo quando percebeu que os clientes começavam a pedir-lhe tarefas demasiado complicadas. Traziam letras diferentes das que sempre fizera. Chamavam-lhes nomes esquisitos. Chamavam-lhes "fontes", disparates, que fontes são sítios onde se vai à água e letras só há duas, as minhas e as da motoreta que o Banco me faz pagar todos os meses.
A verdade é que a corrida estava perdida. A verdade é que até o neto chegava ao computador e o desafiava para fazer letras tão bonitas como aquelas. Sem o reconhecer, aceitava-o. Sem o saber, o neto desenhava o destino do avô. Passava meses sem pintar uma vírgula que fosse, e se ele gostava de vírgulas, era altura em que puxava o corpo atrás e apreciava o trabalho, a altura em que do bolso das calças saía o lenço para primeiro limpar da testa o suor e depois corrigir alguma imperfeição que pingasse descuidada. A vida deixara de fazer sentido e todos os dias se convencia disso um pedacinho mais. Alguém lhe telefonara para o café do lado com uma encomenda. Nem isso hoje o animara, que acordara tão sombrio como o tempo e nem uma festa ao gato fizera. Luís Zorro - Fábrica de Calçado. Esta era das fáceis, ainda por cima para pintar em vidro, coisa de que também sempre gostara, mas que não era para todos, é fácil um homem distrair-se a ver a vida ao contrário. Assim sendo o melhor era começar já, que depois vai-se embora o sol e já lhe custará mais. Assentou delicadamente a placa de vidro em cima da bancada e traçou as primeiras linhas. Depois parou, olhou o tecto e as traves do telhado em pormenor. Procurou no fundo de um caixote de plástico uma corda grossa que em tempos o ajudara a subir e descer andaimes. Atirou-a ao ar e ela passou certinha no local escolhido. Deu a laçada que tudo resolveria e experimentou o nó. Espreitou uma última vez a luz que inundava a bancada pela janela pequenina do sótão. Desceu as escadas e pintou uma placa sublime, talvez a mais bonita de sempre, pelo menos assim lhe parecia que não é fácil escolher-se um filho favorito. Não tinha o Z ao contrário, é importante. Subiu a escada sem esforço e de corda ao pescoço deixou-se cair.
5 comentários:
Parabéns a ambos!
O audio está uma delicia.
mais mais ....
Está bonito, sim senhor. Parabéns! Não há mais?
Há por aí mais, o Luís Gaspar no Estúdio Raposa tem mais alguns. Aliás basta fazer uma busca por Gaspar neste blog para se terem mais 3 ou 4 boas gravações de textos meus.
Parabéns pelo texto. Pecebi que você entende bem da profissão. Fui pintor de letreiros por 14 anos, nasci vendo meu pai pintar e vivi coisas semelhantes ao seu personagem, só não me matei (rsss). Mas, veja só...virei professor.
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