17 julho 2007

Um fado (neste tom magoado)

Há um fado, uma dor, uma sina que está escrita mas que ninguém lê. Uma coisa de genes, de feitio, da massa do sangue de se ser português. Algo que está impresso nos nervos e nas células da lusa gente que provoca esse estranho de enraízado hábito do "ah, mas não fui eu, quem é que lhe disse que era assim?". Há muitos anos, assim que terminei o fugaz processo da minha incorporação militar, um processo que à semelhança de um pouco de tudo na minha vidinha não foi uma coisa curta, linear, rápida, zás trás pás, vou ali já volto, vais num pé e vens noutro, enquanto o diabo esfrega um olho, uma megera (juraria que a vi esfregar um olho...) a quem deram um guichet para gerir, disse-me em pleno DRM de Lisboa "O senhor redige este requerimento, entrega-o e vem cá três dias depois saber da deliberação", fartinho estava eu dela e de saber o resultado do "Peço deferimento" mas que se esperem três dias, uma vida, se tomarmos em conta que o requerimento levaria o mesmo tempo que um Carnaval. Voltei aos costumes três dias depois, o mesmo guichet, a mesma megera, a tirinha de papel estendida a medo, entre dois dedos, talvez com medo que ela mos comesse, cá estou, venha daí o deferimento. O olhar baço, os óculos na ponta da narigal protuberância, aquele aspecto que faz adivinhar a quem vê que a coisa está longe de ter começado. O fado. Há nos olhos dela que apenas vejo porque puxou os óculos para a pontinha dos abismos, um ar de zombaria, um desfile de samba com quilos de bijutaria a marcar o compasso e os gestos das mãos encarquilhadas com dedos revestidos a anéis falsos. "Quem foi a besta que o mandou cá vir hoje?". Fiquei perplexo, mas nunca deixei passar uma oportunidade de fazer valer uma velha máxima que em devido tempo aprendi, uma frase de um banqueiro espanhol a quem ouvi dizer "Mais vale que os almocemos antes que eles nos jantem". "Com o devido respeito, foi mesmo Vossa Excelência...", recuei perante a fera mas sosseguei, ela ficara a recuperar da falta de ar, da apoplexia, daquilo que mal disfarçadamente se chamaria a "pata na poça", enquanto nervosamente lia o requerimento por despachar, foi um ápice, a folha saiu devidamente carimbada e ainda não me tinha caído nas mãos e já se escutava um sonoro "O Próóóóximo!" para sacudir a chuvinha do militar capote que ela, infelizmente não usava. Habituei-me pela vida fora a este fado. Já o cantei milhares de vezes e sei-lhe de cor a letra. Seja com o canalizador, o mecânico, o administrativo, qualquer um canta bem a canção do "mas quem é que lhe disse que isto era para ser feito assim?". Aprendi a defender-me. Notas, tomo muitas notas, adoro minutas, pergunto sempre por elas. By the fucking book devia ser o meu nome do meio. Que assim ninguém me apanha, me humilha ou tenta jogar para pontapé de baliza. Quando hoje entreguei a minha reclamação nas Finanças, foi a primeira coisa que ouvi. "Mas quem é que lhe disse que isto era feito assim?". V.Exa. Estava o caldo à beira de se entornar, eu sem paciência, ela sem argumento. "Ah, mas não foi isto que eu lhe disse..." Foi. Puxei das notas e enfadadamente pus-lhas debaixo das sapudas mãozinhas. O senhor não me fale assim. Mas assim como? Assim, com esses modos. Mas se foi você mesma a fornecer as indicações, vai agora dizer-me que tem de ser de forma diferente? Não, não é isso que lhe estou a dizer. Não quis mais saber. As mãos nervosas, a mesma falta de ar, quase juraria que a vi esfregar um olho, o mesmo rápido despachar dos papéis, o carimbo que se abate, seco, sobre a folha, à qual alguém há-de responder um destes anos. O fado. No mesmo tom magoado.

5 comentários:

Anónimo disse...

Bom, muito bom

Anónimo disse...

Incompetência é o nome.

Patricia Lousinha disse...

Há mesmo. Tem muita razão. Há sempre "uma dor, uma sina que está escrita mas que ninguém lê." Ou se lê prefere fazer de conta que a não lê.
"Vejo" e sinto isso quase todos os dias.
Por isso, também por isso, é que reduzir tudo a escrito ainda tem muito valor e importância. Principalmente nos dias que correm...
A palavra já não é o que era. Tal qual a tradição.

cristina amil disse...

Não é preciso muita idade (com todo o respeito, claro) para se sentir esse fado. Já o senti também, inúmeras vezes. No mesmo tom. E com a mesma consequência "você não me fala assim".
Mexe com toda a minha química e física e demais coisas que queiram juntar. Respiro fundo. Falta-me, isso sim, o ar para impor um mínimo de respeito e frases à altura.


E conheço um caso em que o "quem lhe disse isto?" foi substituído por um "terá de fazer um requerimento para saber a resposta ao seu primeiro requerimento".

Anónimo disse...

A versão do "... só saio daqui quando me der a porcaria do papel!" às vezes também resulta (não que eu a utilize habitualmente, porque os genes que herdei do Tio Mário são bem mais pacientes e não dão para isso). De qualquer forma, com essa tua forma diplomática mas acutilante levas bem a água ao teu moinho.