Lembro-me muito bem do choque que senti quando enfrentei as minhas primeiras profundas diferenças culturais e civilizacionais. Há muitos anos eu era, por mero acaso, o único europeu entre os convivas sentados numa belíssima tenda numa festa de aniversário em plena cidade de Rabat. Semi-avisado do que me esperava, aguentei estoicamente doses de chá de menta que dariam para aromatizar pastilhas elásticas de duas ou mais fábricas. Suportei, sem me queixar, o odor intenso dos manás de carneiro que não paravam de entrar trazidos do exterior. Nas longas pausas, o fumo dos cachimbos e de outras substâncias que se consumiam longe da legalidade. Nos breves segundos em que tive de me decidir sobre que ferramentas usar para atacar um prato de couscous não hesitei muito tempo, embora a consciência não me deixasse sossegado nem por um segundo, e usei as mãos, como toda a gente fazia com a maior naturalidade. Só não consegui suportar o sabor de um ingrediente demasiado forte de uns fedorentos pequenos limões a que chamavam de Bassorah, mas aos quais apelidei de Limões do Inferno. Consegui esgueirar-me discretamente e vomitar a mistela e ainda hoje suspeito que as fábricas de detergentes de amónia usam aqueles horríveis frutos para fabricar produtos altamente tóxicos. Mas sobrevivi.
Com o tempo e com as minhas constantes ligações à cultura árabe, tornei-me mais tolerante. Aprendi a respeitar alguns usos, chego até a considerar alguns mais civilizadamente evoluídos que muitos dos do Ocidente. Fiz meus amigos alguns desses árabes que me retribuiram o gesto. Levámos tempo a aceitar certas diferenças. Num ambiente de trabalho de uma multinacional os contactos eram frequentes e os choques absolutamente constantes. Da zombaria passei à aceitação, sendo que esses pequenos gestos foram sempre mútuos. Deixei de brincar com as festividades que não entendia mas cujos cartões electrónicos me propunham celebrações tão curiosas como o dia do Carneiro ou outra etapa épica da vida do Profeta. Troquei cartões do Dia da Ascensão do Profeta por fotografias de uma sardinhada de Santo António. Deixei, em plena Europa, de beber álcool às refeições por respeito para com os presentes. Consegui convencer alguns dos meus colegas que o facto de se pedir um prato de salmão fumado não me obrigava a ir à cozinha ver com os meus próprios olhos se o cozinheiro não conspurcava os ingredientes com algum pingo de cerveja. Levei muito tempo a tentar entender a subalternidade da mulher árabe (na verdade nunca consegui mas não o discuto). Custou-me muito ver Al-M. em pleno Printemps puxar de uma pequena corda com nós e medir a altura mínima de uma saia de criança com apenas seis anos para aferir "se era decente". Dificilmente El-A. perceberá alguma vez que eu possa censurá-lo por querer ligar à sua mãe às três da madrugada "para saber se ela está bem" e eu perguntar-lhe "Mas ela morre se tu não lhe ligares agora?", o que originou um monumental amuo num homem de quase quarenta anos. Levei muito tempo a entender como natural ser beijado na face por um homem grande e barbudo e aguentar a asfixia de um abraço sincero recheado de beijos que algumas vezes me embaraçaram. Aprendi a tolerar interrupções de reuniões para um momento de oração. Prometi a mim mesmo nunca mais brincar quando um deles se abeirava do recepcionista de hotel para marcar dois despertares sendo um a meio da noite e muito menos voltar a ensaiar a portuguesa piada do acordar de madrugada para baixar os estores do quarto. Aguento, e já o faço com gosto, a regatear preços em Paris, sendo instruído na argumentação por um iemnita. Aprendi a viver com o aguçado espírito negocial dos meus amigos (tudo se compra, tudo se vende, tudo está marcado com margens excessivas). A alguns deles não vejo há anos, mas continuo a receber emails com fotografias de jantares em Ryhad no Nando's um franchise português de frango assado que tem no logótipo "a very nice coloured bird", que viria mais tarde a comprovar ser um imponente galo de Barcelos. Sim, há uma empresa no Qatar que tem exposto na recepção um vigoroso galo de barro pintado que para lá expedi um dia.
Lembrei-me de tudo isto a ler uma entrevista de Nelo Vingada, que está a treinar a Selecção de Futebol da Jordânia. Numa pequena caixa, nelo Vingada conta, deliciosamente um desses choques culturais. A dada altura diz: "Fui convidado para jantar a uma sexta-feira, que é o dia sagrado dos muçulmanos, com a família do vice-presidente das selecções nacionais, Fahad Dahmas. Quando chegámos a casa, de um lado só estavam homens, as mulheres estavam noutro lado e a comida numa toalha estendida no chão. Muita comida, à boa maneira árabe e um carneiro, que é o forte deles. E Fahad disse-me: "Mister Vingada, é uma grande honra recebê-lo. É o primeiro treinador que convido para vir a minha casa". E perguntou-me se queria comer de faca e garfo ou à maneira árabe, com as mãos. Comemos com as mãos o arroz, o borrego e sei quão importante foi esse factor de integração, porque eles sentiram que estávamos a respeitar a sua cultura. (...) Perceberam que estava ali uma pessoa que se juntou a eles, que os respeitava, De tal modo, que um dia em conversa com o príncipe, ele disse-me: "Você é um dos nossos. Só falta uma coisa para ser um homem do Islão, é casar com quatro mulheres. Se quiser casar não tenha problemas, eu pago-lhe os casamentos." E eu perguntei-lhe: "O príncipe tem quatro mulheres?". A resposta foi surpreendente: "Não, só tenho uma, porque mais do que uma dá muita despesa."
Com o tempo e com as minhas constantes ligações à cultura árabe, tornei-me mais tolerante. Aprendi a respeitar alguns usos, chego até a considerar alguns mais civilizadamente evoluídos que muitos dos do Ocidente. Fiz meus amigos alguns desses árabes que me retribuiram o gesto. Levámos tempo a aceitar certas diferenças. Num ambiente de trabalho de uma multinacional os contactos eram frequentes e os choques absolutamente constantes. Da zombaria passei à aceitação, sendo que esses pequenos gestos foram sempre mútuos. Deixei de brincar com as festividades que não entendia mas cujos cartões electrónicos me propunham celebrações tão curiosas como o dia do Carneiro ou outra etapa épica da vida do Profeta. Troquei cartões do Dia da Ascensão do Profeta por fotografias de uma sardinhada de Santo António. Deixei, em plena Europa, de beber álcool às refeições por respeito para com os presentes. Consegui convencer alguns dos meus colegas que o facto de se pedir um prato de salmão fumado não me obrigava a ir à cozinha ver com os meus próprios olhos se o cozinheiro não conspurcava os ingredientes com algum pingo de cerveja. Levei muito tempo a tentar entender a subalternidade da mulher árabe (na verdade nunca consegui mas não o discuto). Custou-me muito ver Al-M. em pleno Printemps puxar de uma pequena corda com nós e medir a altura mínima de uma saia de criança com apenas seis anos para aferir "se era decente". Dificilmente El-A. perceberá alguma vez que eu possa censurá-lo por querer ligar à sua mãe às três da madrugada "para saber se ela está bem" e eu perguntar-lhe "Mas ela morre se tu não lhe ligares agora?", o que originou um monumental amuo num homem de quase quarenta anos. Levei muito tempo a entender como natural ser beijado na face por um homem grande e barbudo e aguentar a asfixia de um abraço sincero recheado de beijos que algumas vezes me embaraçaram. Aprendi a tolerar interrupções de reuniões para um momento de oração. Prometi a mim mesmo nunca mais brincar quando um deles se abeirava do recepcionista de hotel para marcar dois despertares sendo um a meio da noite e muito menos voltar a ensaiar a portuguesa piada do acordar de madrugada para baixar os estores do quarto. Aguento, e já o faço com gosto, a regatear preços em Paris, sendo instruído na argumentação por um iemnita. Aprendi a viver com o aguçado espírito negocial dos meus amigos (tudo se compra, tudo se vende, tudo está marcado com margens excessivas). A alguns deles não vejo há anos, mas continuo a receber emails com fotografias de jantares em Ryhad no Nando's um franchise português de frango assado que tem no logótipo "a very nice coloured bird", que viria mais tarde a comprovar ser um imponente galo de Barcelos. Sim, há uma empresa no Qatar que tem exposto na recepção um vigoroso galo de barro pintado que para lá expedi um dia.
Lembrei-me de tudo isto a ler uma entrevista de Nelo Vingada, que está a treinar a Selecção de Futebol da Jordânia. Numa pequena caixa, nelo Vingada conta, deliciosamente um desses choques culturais. A dada altura diz: "Fui convidado para jantar a uma sexta-feira, que é o dia sagrado dos muçulmanos, com a família do vice-presidente das selecções nacionais, Fahad Dahmas. Quando chegámos a casa, de um lado só estavam homens, as mulheres estavam noutro lado e a comida numa toalha estendida no chão. Muita comida, à boa maneira árabe e um carneiro, que é o forte deles. E Fahad disse-me: "Mister Vingada, é uma grande honra recebê-lo. É o primeiro treinador que convido para vir a minha casa". E perguntou-me se queria comer de faca e garfo ou à maneira árabe, com as mãos. Comemos com as mãos o arroz, o borrego e sei quão importante foi esse factor de integração, porque eles sentiram que estávamos a respeitar a sua cultura. (...) Perceberam que estava ali uma pessoa que se juntou a eles, que os respeitava, De tal modo, que um dia em conversa com o príncipe, ele disse-me: "Você é um dos nossos. Só falta uma coisa para ser um homem do Islão, é casar com quatro mulheres. Se quiser casar não tenha problemas, eu pago-lhe os casamentos." E eu perguntei-lhe: "O príncipe tem quatro mulheres?". A resposta foi surpreendente: "Não, só tenho uma, porque mais do que uma dá muita despesa."
6 comentários:
Sempre que me dá para ouvir alguém a desejar poder ter três o quatro mulheres vem-me à cabeça o mesmo argumento. E se fossem só as despesas..
A meu ver viajar é uma das melhores formas de se aprender a ser tolerante, com os outros e connosco. Por viajar é favor não interpretar idas a "resorts de luxo" no Brasil e outras coisas semelhantes.
Confesso que sempre tive problemas em aceitar bem a cultura árabe, não porque me sinta mal em aprender, aceitar e actuar debaixo das suas regras quando se viaja ao mundo árabe, mas porque com os muitos que lidei aqui no nosso país e quando são eles a estar fora de casa a tolerância não existe, e os costumes deles continuam a ser aqueles que prevalecem, e não revelam qualquer tentativa de integração, a não ser beber álcool às escondidas.
Alguém me disse que nestes casos culturais cabe ao povo mais "liberal" aceitar o conservador, mas isso a mim faz-me muita comichão.
Garanto-vos que se fosse ao contrário, e que para entrar numa igreja católica tivessem de se descalçar, e isso fosse considerado impróprio na cultura deles, nenhum o faria, no entanto 100% dos turistas ocidentais se descalçam para visitar um templo muçulmano.
A tolerância árabe é só no país deles, quando cá estão, em férias é outra história.
De reparar que os que trabalham e vivem no ocidente adaptam-se por uma questão de interesse lógico, mas nunca aceitam.
Recebem muito bem e são muito hospitaleiros, no país deles enquanto fores completamente submisso ás suas regras.
Como disse o quack chama-se a isto ser tolerante, embora eu ache que seja outra coisa.
Ora aí está! Pontos de vista diferentes.
Aqui, quem tem várias mulheres ganha dinheiro comó'caraças.
Ou não será assim?
Belíssimas reflexões, Pedro. Acabo de chegar de Istambul, e não imagina como estas palavras fazem sentido para mim, neste momento. Eu tenho uma vantagem: fundo-me na paisagem em todo o lado, troco de pele com facilidade e fico nativa em pouco tempo. Para mim, isso é que é viajar (subscrevo inteiramente a crítica do quack aos resorts de luxo, guettos onde não chega a cultura dos países onde se está).
Fora a subalternidade feminina na cultura árabe - que nunca entenderei, nem quero - há muitos pontos de contacto com a nossa. Não foi impunemente que eles estiveram por cá tantos séculos...
As-salaam Alaykum, Pedro!
Estou desde Setembro de 2008, até Julho de 2009 em Abu Dhabi e Dubai, nos Emirados Árabes Unidos a trabalhar como operador de câmara.
Também passei por algumas dessas etapas para me diluir nesta cultura tão diferente da Ocidental. Ainda para mais cheguei em pleno mês do Ramadão...
Gostei deste post, e hei-de voltar para conhecer o resto do s/teu trabalho.
Também tenho um cantinho onde desabafo uns ecos da minha experiência arábica.
Está convidado:
pensaventosnodeserto.wordpress.com
Vitor Martinho
Happy trails, Vítor! E se de algum modo lhe puder ser de algum uso em matéria Apple, mesmo no Dubai, não deixe de me contactar.
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