"Há um mundo novo para cá de Castro Verde...", disse ela. Não que eu a consiga ver, apenas lhe lobrigo a cabeleira ainda frondosa, está sentada à minha frente semi-tapada pelo banco da "carreira" que ela mesmo mencionou há minutos e foi isso mesmo que me chamou a atenção. Talvez exagere, faz parte da estética da escrita, não foi bem chamar, foi mais uma cotoveladazinha mental, um assobio discreto quando ela disse à sua anafada companheira de viagem que era um verdadeiro prazer "ir viajando na carreira". Vocalizar assim um autocarro de setenta ou mais lugares não é para todos e é bastante revelador. Talvez ao leitor menos atento lhe escapem estas nuances, aquilo que para um citadino é um autocarro, para um aculturado é uma camioneta, para o verdadeiro degredado rural, aquele a quem as raízes nunca secaram mesmo que mergulhadas em alcatrão, uma "carreira" é isso mesmo, uma "carreira". Les beaux esprits se rencontrent, um rural reconhece sempre um outro rural e isso é imutável, é coisa de genes, campainhas, apertos de mão secretos, sinais dissimulados de profissional de sueca. Eu também navego por hoje na "carreira", capitão de outros barcos e mares, sem molhar o pé faz décadas, mas há coisas fatais e o destino nem sempre arca sozinho com as culpas. São alentejanas, retintas, os gerúndios soltam-se como pombos bravos em montados de sobro, saltam aqui e ali sem pré-aviso. Não fico admirado. A cidade do Barreiro e concelhos limítrofes sempre constituiram uma barreira natural à invasão alentejana da Grande Lisboa e quem quer que queira rever o Alentejo nem precisa de descer abaixo da Estremadura. "É o que lhe digo, há um mundo novo para cá de Castro Verde...". Torna-se complicado seguir-lhe o raciocíno, aqui e ali o roncar do motor abafa-me a fonte, tenho vontade de pedir ao motorista que tenha calma, que me fazem falta estes retalhos. Consigo reconstituir partes do diálogo, que nem é bem um diálogo, é uma queixa, um lamento, algo surpreendente. "Já não há ceifeiras Dona Célia, já não há ceifeiras...". A outra, cujo nome não retive (ou se calhar distraí-me), concorda, eu ali a arder em curiosidade sobre o ponto exacto em que já não há ceifeiras, não contrapõe, um bom contraponto serve sempre ao espectador como um degrau onde se descansa e se ganha fôlego, dá-nos tempo de ir registando as modulações de voz, as fúrias e os risos. "Agora já nem usam chapéus de palha, é tudo bonés desses de pala...". A outra continua a concordar, apenas acenando com a cabeça e perdoar-me-ão vocês todos que a dada altura eu já não consiga distinguir os acenos de assentimento dos solavancos daquilo que já foram molas da "carreira". "Quando eu era nova, todas usávamos chapéus de palha, todas. Chapéu e lenço, está claro!". Para mim é iconográfico, não deixo de lhe imaginar o cabelo, por ora pintado, preso por um lenço. "As casadas tinham na fita um galinho em chapa, pintado." a outra dizia humm humm em consonância com o rugir do motor. "As virgens essas usavam uma pena de pavão, bem espetadinha, para mostrar. Para mostrar sem dizer, está bom de ver... Mas agora acabou tudo... Já não há ceifeiras...". A outra olhou-a bem de frente, fez uma pausa cavada, os olhos sábios brilharam. "Se calhar já não há é pavões..."
05 março 2008
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2 comentários:
:) Os semáforos de outros tempos
O Alentejo a viu nascer.
:)
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