26 maio 2008

O Risquinho

Não lhe conheço o nome próprio, é óbvio que o terá mas nunca lho quis saber ou se mo disseram nunca me interessei por ele, pelo nome, é do nome de que falo e nada mais. De alcunha "O Risquinho" é um dos muitos personagens que ajudaram a compor as ilustrações do meu livro de páginas de vida. Conheci-o numa ilha onde estive uma temporada em trabalho na montagem de uma bilheteira de uma sala de espectáculos, e era por mim, sempre por mim por quem ele passava de manhã cedo direito ao seu posto saudando-me com um sotaque ilhéu cerradíssimo que aprendi a admirar e a imitar. "'B'Dia Anicête!" ao qual eu retorquia com um aceno de cabeça e meia dúzia de imprecações por ele me obrigar a interromper a centésima contagem de registos que eu bem tentava levar a bom termo antes que o edifício fosse invadido por dúzias de operários de balde e pá, martelo e um cortejo de latas de tinta que faria inveja a um desfile carnavalesco. E sempre que eu reiniciava a ingrata tarefa de ter um sistema de bilhética afinado, era garantido que o Risquinho, depois de ter pendurado delicadamente o casaco por cima do canhão da lente da sua nova máquina de projectar, "a 'nha menâina", descia a escadaria de basalto polido de anos e me batia com os nós dos dedos no grosso vidro, num toc-toc que me sobressaltava quase sempre. "Vai um risquinhe, Anicête?". Levei três dias a resignar-me à minha sorte, eu já o esperava e restava-me aguardar serenamente o ritual do casaco e do "risquinhe" para continuar a trabalhar tão sossegadamente quanto possível. Talvez nunca ninguém vos tenha explicado que é absolutamente impossível trabalhar descansado numa bilheteira de cinema. Estar ali é como estar num aquário com a diferença de que ninguém pergunta coisas aos peixes e uma bilheteira é o primeiro ponto de um cinema onde quem entra vê alguém, pelo que um tipo rapidamente se especializa em informações de carácter genérico e tenta atender, pacientemente, sempre pacientemente, quem quer que por ali entre, do homem dos gelados à senhora surda que quer saber quando começam a "passar fitas". Ao quarto dia, já livre das minhas obrigações informáticas procurei tradução para aquela pergunta do "risquinhe". Aconselharam-me que o acompanhasse, que acedesse ao convite d'um "risquinhe" para perceber ao que íamos. Tens de ir com ele, diziam-me, só assim te tornas um "irmão" do Risquinho. E fui, recordo que eram nove e meia da manhã de um dia névoa em Ponta Delgada. Virada a esquina, conduziu-me à porta do bar/taberna e ordenou com voz imperativa para dentro do balcão que pretendia "Um risquinhe p'ra mim e outro p'ró Anicête!". O taberneiro, solícito e com um ar absolutamente natural aviou duas canecas monstras de 40 centilitros de verdelho que me iam causando (só pela surpresa) um ataque cardíaco. Foi quando peguei no copo que encontrei a origem da alcunha, o bordo do monstruoso copo era decorado por uma inocente risquinha azul...

2 comentários:

Miguel disse...

Em alguns copos o "risque" parece boiar...

Miguel

m.camilo disse...

eh...eh..eh...e por baixo da risquinha azul não estava escrito "volte já"?