27 julho 2008
Uma coisa em bom
Tenho uma memória auditiva extraordinária. Assim, sem peneiras, classifico-a logo de extraordinária para desanimar qualquer pessoa que se apresente à compita e ainda dou de avanço caso seja necessário. Sou capaz de falar com alguém por telefone e depois de o escutar uns míseros segundos reconhecer-lhe a voz e tratá-lo pelo nome próprio sem me enganar mesmo que não fale com a pessoa há cinco anos. Nunca percebi de onde veio esta habilidade que nunca a treinei mas que isto é fora de comum, lá isso é, não me lixem, a prová-lo estão muitas pessoas que me perguntam "Sabe quem fala?" e a quem eu respondo que sim, mesmo que todas as rodinhas dentadas do cérebro estejam à beira da desintegração física por sobreaquecimento. Deve ser para provar a teoria da compensação universal de qualidades e atributos também conhecida pelo "Deus fecha uma janela mas abre logo uma porta" e se assim não é será porque o Criador odeia correntes de ar o que me parece demasiado picuinhas para um ser que bem podia ter inventado o ar condicionado universal. Tenho uma memória visual péssima. É rara a semana em que não há alguém que me cumprimenta com ar de enorme familiaridade e ali estou eu, tacanho, a tentar ler-lhe os sinais, a conferir fichas mentais, a transpirar por dentro e por fora, porque raramente consigo atinar-lhe com a graça, mesmo que seja a Graça ela mesma, que diz o fado que é tão bela que é tão boa, que até é pecado um tipo não conseguir consumar a identificação. É péssimo, faço interiormente imensas figuras tristes mesmo que cá fora mantenha a serenidade dos sábios e lhes faça uma festa como se o meu interlocutor tivesse sido resgatado de perigos mil e eu estivesse fartinho de lhe conhecer o primeiro e último e quem sabe todas as outras partículas do assentamento baptismal. É uma pena que assim seja. É aborrecido. Quase sempre só para mim que em trabalhos mil me vejo por vezes, tentado quase sempre a mandar cumprimentos a pessoas que ou já morreram ou nunca existiram, dizia apenas tentado que a prática destes momentos de interrogação suprema já me calejaram para múltiplas situações do género. Procuro que seja a pessoa com quem falo e não consigo reconhecer a dar-me pistas. Pareço um burlão primário desses que nada sabendo sobre a vítima a levam a entregar os pontos, o ouro e a informação. Resulta na maior parte das vezes mas alturas há em que o resultado roça o desastre. Como um tipo que encontrei centenas de vezes num dado ano e que no primeiro encontro me inquiriu com particular detalhe sobre o estado de saúde de noventa por cento da minha família que parecia conhecer com enormes pormenores. Que sim, que estavam todos bem, mesmo uma tia que haveria de falecer poucos dias depois em condições que haveriam de me fazer pensar no assunto durante muitos anos. Despachei-o, despachei-o literalmente em poucos minutos, respondendo com evasivas e frases neutras pensando sempre que ele haveria de se perder nos caminhos das nossas vidas e que dificilmente o voltaria a encontrar. Azar dos Távoras, acabei por me cruzar com ele durante centenas de outras vezes, o festival miserável da minha figura a perguntar-me quem seria a criatura, dia após dia venham de lá esses ossos, eu a desfazer-me em banalidades e frases curtas, a fugir para os últimos lugares do autocarro na esperança de que ele não me seguisse e a tortura assim terminasse. Inquiri a família, fiz retratos robot, levei ao local habitual uma pessoa de família na esperança de auxílio ou solução para o puzzle, mas desgraçadamente nunca consegui saber quem era o gajo. É claro que esta situação só se gera porque eu me sinto absolutamente incapaz de confessar à primeira a minha ignorância sobre a pessoa, parece-me mal, assim como assim são só uns minutos, longe de imaginar estava eu que aquela alma haveria de apanhar durante um ano inteiro o mesmíssimo autocarro que eu, capaz de levar um tipo à loucura, assombrar-me os sonhos ou fazer repercutir o trauma pela vida fora em aspectos onde menos se espera que surjam. E convenhamos é muito chato ao terceiro ou quarto encontro confessar-lhe que afinal não tenho a mais ténue ideia de com quem falo, é uma espécie de armadilha que eu mesmo monto e na qual enfio não o pé mas a cabeça e ainda sou mocinho para apertar o nó. Todos temos os nossos esqueletos no armário, aqueles que dizem não ter é porque os arrumaram muito bem, é apenas uma questão de procurar com mais cuidado. Acabei de voltar do café onde fui cumprimentado por um tipo que me interpelou como se tivesse feito a tropa comigo mesmo levando em conta que apenas fiz oito horas de serviço militar. Tratou-me pelo nome, pediu-me desculpa de não me cumprimentar com a mão direita porque a tinha suturada com largas dezenas de pontos e foi capaz de me contar a história da operação, da anestesia ao dreno, o que levou à vontade vinte minutos. Durante todo esse tempo, enquanto revolvia o açúcar no fundo da chávena e poucas vezes um café foi tão bem mexido, eu perguntei a mim mesmo "Mas quem diabo é este cromo?". Quando dei pelos vinte minutos lembrei-me de que o ponto de não regresso já tinha sido ultrapassado, já é impossível dizer a um tipo a quem conhecemos os tendões por dentro "Desculpe lá, mas você chama-se como?". Uma vez mais fiquei danado pela minha própria impotência mas principalmente por ele me ter dito "Eu ainda não fui lá levar-lhe aquilo. Não é desleixo, mas é porque quero levar-lhe uma coisa em bom...". Assim seja.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
12 comentários:
O Jorge Amado também era assim, incapaz de saber com quem estava a falar, socorria-se da mulher que tinha óptima memória e lhe dizia o nome do interlocutor. Mas um dia ia ele no elevador e entra um sujeito que o cumprimenta efusivamente e ele que estava só não sabendo de quem se tratava mas não querendo dar parte de fraco conversou entusiasticamente com o indivíduo, perguntou pela família e a conversação corria muito bem, ele todo satisfeito por ter conseguido ultrapassar aquela situação, quando de repente o outro começa a desculpar-se e lhe diz que o tinha confundido com outra pessoa, afinal não o conhecia ;)
Eu sou péssimo a recordar nomes das pessoas. Tenho de fazer associação com algum homónimo para me lembrar.
Já de lugares é o contrário. Basta passar uma vez para ficar "gravado". Coisas.
Há um "truque" que poderá resultar contigo.
Já que referes que pela voz vais lá direitinho, só tens de "fechar os olhos" por uns instantes e concentrar-te apenas na voz. Depois de vir o "flash" já estás em casa.
Uma vez, quando estudava em Tomar, entrei no autocarro que me haveria de trazer às Besteiras, isto, claro, depois de fazer a benditas Voltas de Alviobeira e depois em formato 'light', as Voltas do Porto, que ao pé das primeiras eram, e continuam a ser, umas verdadeiras aprendizes. Mas, dizia eu, ao entrar no autocarro, logo nos bancos da frente, sou efusivamente cumprimentado por uma menina, por sinal muito bonita, mas que eu não fazia a menor ideia de quem seria. Ora, perante o dilema de me sentar ao logo ali, ao lado dela, ou de me dirigir para o fundo do autocarro, local habitual do ajuntamento da malta de Ferreira e arredores, não hesitei, e sentei-me logo ali, claro que não sem antes ouvir uma série de 'bocas' por parte da malta lá de trás, que entretanto se aprecebeu que tinha sido preterida.
Passados alguns minutos de conversa, apercebi-me que a mocinha afinal conhecia era o Ricardo, que até ao ano anterior tinha estudado em Cernache do Bonjardim (localidade para onde ela se dirigia). Aliás, tinham inclusivamente sido colegas de turma. Mas já era tarde demais, eu tinha tratado de a cumprimentar e conversar com ela no mesmo registo em que ela me tratou, e não podia depois dizer 'desculpa lá, eu cumprimentei-te e estou aqui a conversar contigo mas afinal não te conheço, tu provavelmente conheces é o meu irmão...', ainda por cima tendo em conta que o autocarro já ia em viagem e eu não tinha muitas hipóteses de fuga. E lá ia eu remendando a coisa quando vinham perguntas do género: ' ...então tens falado com a Susana?' (Susana, eu sei lá quem é a Susana!?!...) Ao que eu respondia, pois... sabes... bem... não a tenho visto. Enfim, acho que a viagem nunca foi tão longa!
Assim, socorri-me de todos os pontos de referência que tinha em relação à passagem do Ricardo por Cernache e lá consegui levar a conversa seguida até às Besteiras.
No final, estive quase para lhe contar a verdade, mas achei que era mau demais, e deixei-a continuar até à sua terra, convencida de que tinha ido a falar com o seu colega de turma do ano anterior. Ah... ainda hoje estou para saber o nome dela...
E já pensaste bem se não foi o mesmo que te encontrou em Cuba?
Vai não vai, ainda te calha uma caixa de Cohiba ou Montecristo...
:)
Não foi o mesmo que me "viu" em Cuba. E charutos é Partagas se fizeres o obséquio
ainda hoje estou para saber o nome dela...
Liga ai teu irmão! Pode ser que ele tenha alguns nomes para a troca... ;)
Estava a ler-te a imaginar quantas vezes aconteceu isso connosco.
Ainda te lembras onde me conheceste?
Porque é que eu acho que estamos à beira da desgraça?
E eu? E eu?
Ora bom... deixa cá ver... 1987... Cernache do Bonjardim... Perguntou pela Susana...
:)
Era a Sandra!
Susana... Sandra... bem me parecia que não tinhas lá grande vocação para padre!
Mas olhem lá, há algum significado cabalístico no facto de vocês só se darem com garotas cujo nome começa por S?
Enviar um comentário