09 outubro 2008

A escrita

Escrever, escrever, impõe-se que escreva, não o que me vai na alma que não boto jeito para o romance negro, a vida equivocada, embrulhada, estagnada, nada. Quem o faz se não afoga, mas a verdade é que me dá asco esta gentinha que tudo pode, por vezes com agá que te persegue, que nos persegue que não estou por certo só nesta viagem. Encomendaram-me um discurso vejam lá, muito gosto eu de escrever discursos para gargantas alheias, ironizo e gargalho, um tipo nem treme, atira-se, rasga o texto pela folha fora, parece tesoura de alfaiate em peça de pano, pano para mangas, não gosto, nunca gostei de escrever o que não sinto, creio que nem cuide nem saiba da glória alheia, mais valia um epitáfio, apetece-me tanto escrever um epitáfio, escrever-lhes um epitáfio nem que fosse a maceta e ponteiro na tampa da tumba. Tunga! Tunga! Aqui jaz um néscio que nem escrever sabia e sua vida se fez desta filosofia. Manda quem pode, quem não pode arreia, sinto-me arreando e a mente foge-me para a divagação da escrita de outrém, como eu hoje te percebo oh Marx, oh Engels, oh Trotsky, eram tudo balelas em que acreditei, eu cristão nem novo nem velho, renego os meus antigos deuses que em pó se esfumaram com o crescer dos meus próprios calos da mão e da pena, da que escrevo e daquela com que me sinto. Ontem alguém me disse que eu era uma enciclopédia, gentil voz que me embalou durante três minutos. Apetece-me abri-la, a tal enciclopédia e fantasiar sobre a glória do discurso plástico, não sentido. Sinto-me a dividir-me, desculpem-me a crase e a frase na aliteração, há um eu que se esmera na prosa, que faz pela vida da tarefa ingrata de dar graxa ao cágado a quem nunca puxei pela arreata. Venham! Venham a mim os feitos, os adjectivos! Onde estão quando preciso de vós? Onde estão quando preciso da voz que me devia escorrer pelo teclado, líquida, gelada e cortante? Arrepio o caminho e arrepia-se-me o próprio corpo. Li há dias num email vadio que o arrepio é próprio do medo. Concedo. Há uma parte de mim que tem medo e outra que escreve como os loucos, aos poucos. Apetece-me fazer jorrar deste leite, espremer-lhes a vaca, glorificar-lhes feitos tais que na assembleia se ouçam ais e outros frémitos que tais. Mas há um outro eu que pensa em esconder a verdade na mentira, gato escondido, rabo e vergonha de fora. Para que se saiba, apenas para que se saiba. E são os meus eus que se embrulham, discutem e dividem a tarefa. Escrever, escrever, impõe-se que escreva. Como um porco na ceva.

3 comentários:

Anónimo disse...

O medo faz os heróis... Quanto à revolta e náusea, abençoada bílis esta que permite regurgitações literárias deste calibre. Outros fenecem lentamente por dentro, prefiro ouvir e ler os teus estrebuchos. É sinal que ainda és tu.


Grande abraço... e força!

inespimentel disse...

... escrever, e muito, sempre escrever, como se de matar uma sede imensa se tratasse!
... a ideia, o sentimento, que se desenham ao ritmo do teclado.
É bom

Bhixma disse...

tem uma pequena surpresa para si no Expresso do Oriente...