10 novembro 2008

Vitalício é para sempre

Absolutamente entediado com a longa espera da sala de embarque o miúdo inventava jogos e passatempos que o distraissem daquela longuíssima fila de adultos que faziam os possíveis, também eles, para se distrair do aborrecimento. Escrutinou atentamente a bagagem de mão dos pais e de todos os que o rodeavam, atirou-se com a fúria suave com que só os miúdos conseguem ter, à fechadura de segredo de uma pequena mala. Perguntou ao pai se quando crescesse podia ser arrombador de cofres e o pai, com a impaciência própria da situação respondeu-lhe que sim, que podia, o que me fez sorrir e acender nos olhos do miúdo uma luz brilhante, a luz da certeza daqueles que conseguem ver à sua frente um futuro deveras promissor. A verdade é que, coincidência ou não, conseguiu abrir o fecho com umas ajudas da avó cúmplice que lhe segredou ao ouvido as primeiras aulas de formação profissional na especialidade de arrombador. Tirou lá de dentro dois Bilhetes de Identidade que esquadrinhou com minúcia. Eu sabia, eu sei quase sempre estas coisas, o ar dele não me enganava desde que ali chegara, que a coisa não ia ficar por ali. "Avó, o que é que quer dizer "vitalício"?". "Vitalício quer dizer que não preciso de fazer outro BI, esse é para sempre". "Mas porquê?". "Porque a avó já cresceu tudo e como não vai crescer mais não precisa de outro...". Ele voltou aos cartões, leu um, depois outro, voltou ao primeiro como que para confirmar que eu tinha razão. "Mas o meu pai que já é velho não tem vitalício...". "O teu pai ainda está a crescer, não é tão velho como a avó...". "Mas o meu pai não cresce mais, ele também devia ter ali "vitalício" e não tem...". "O teu pai ainda está a crescer, para os lados, mas ainda está a crescer, a avó já cresceu tudo, percebeste?". O puto olhou de novo para os cartões e respondeu com um sonoro "Não!" que fez a avó suspirar. A avó foi salva pelo gongo porque a fila do embarque começou a mover-se. O puto, esse foi entreter-se a recolher os cartões de embarque da família.

2 comentários:

Álvaro disse...

É um caso tipico de epistemologia social, muito característico em Fuller

Anónimo disse...

Isto me fez lembrar de um que achava que o tio deveria sempre perder as malas para poder ser reembolsado pela companhia aérea. Sempre tem um curioso ouvindo... Tremendo delatores, esses moleques!