"Meu pai se aposentou com 65 anos. Cheio de energia. Vinha de uma carreira de sucesso como químico da área têxtil. O conhecimento acumulado valia ouro para os novos talentos do mundo dos corantes, e algo tinha de ser feito para passá-lo adiante. Nos classificados da revista _Macmania_, um velho Classic pela bagatela de 100 paus. Eu e meu pai fomos ao endereço, na Mooca. Escolas Salesianas. O dinossauro na caixa era de um simpático padre. Compramos. Dois Salem-sianos convertidos! A interface lúdica da Apple encantou meu pai. Feito criança, ele brincou com o sistema 7.1, colecionou ícones, criou desktops e ficou imbatível no Tetris.
Pouco depois, os Performa 630 invadiram os supermercados. Comprei um. Tela colorida, drive de CD e modem. Papai ficava hipnotizado com os protetores de tela lisérgicos. Ria ao se lembrar das torradeiras e peixinhos do PC, em contraponto com as viagens delirantes do Mac. E me ligava no meio da noite para dizer que teclando Shift, Control e mais algum caractere fazia vodus inacreditáveis. Depois, ele descobriu o Claris Works que, antes da Microsoft, propunha uma convivência amigável entre texto, planilha, desenho, banco de dados, pintura e slide show. E a investida do sexagenário virou coisa séria. Ele começou a colocar no Mac, tudo o que sabia, de forma inquieta e criativa. Mostrou os trabalhos aos colegas e a reação química foi imediata. Uma obra inédita e inventiva. Nada de firulas e textos áridos. As presentations eram poemas concretos, ilustrados e atraentes. Meu pai foi convidado para ministrar cursos e palestras pelo Brasil. E lá foi ele, em um tour de dar inveja a qualquer popstar.
Durante anos, fez milagres convertendo arquivos para que rodassem nos velhos PCs das indústrias e universidades. Passou para o Performa 5500. Com o novo Office, a relação entre Bill Gates e Steve Jobs se tornava amistosa. A internet era rápida e meu pai pesquisava o uso do bambu como matéria-prima sustentável. Completou 80 anos online e com soluções avançadas. Convertia os amigos pecezistas à plataforma OS como convertia seus arquivos. O tempo correu e o Performa deu sinais de senilidade. Foi quando o eMac G4 branquinho pousou na mesa de seu escritório. Fotos, filmes e arquivos de áudio invadiram o HD. Downloads e uploads frenéticos. Pastinhas enchendo o iPhoto de orgulho. Músicas do Chico Buarque no iTunes. Mas algo ainda irritava. Na hora de se apresentar, um cedezinho na mala tremia de medo de enfrentar a antipatia de algum velho PC. Eu entendia a vertigem do meu pai e dei-lhe um iBook G4. O novo desafio: pilotar o dataShow. “Mas e os adaptadores de vídeo? Vão funcionar?”. “Leve todos, um deles tem que funcionar”. Funcionou.
Julho de 2008. Meu pai voltou orgulhoso de Blumenau. Próximo destino: Fortaleza. Combinamos que usaria o Keynote no lugar do PowerPoint. Um passo decisivo para se livrar das transições manjadas, gráficos de pizza e outras breguices. Mas outra viagem apareceu. Resolveu-se que papai trocaria uma válvula mitral de seu coração. Algo simples, como a troca de um pente de memória RAM. E dessa viagem ele não voltou não. A medicina não soube processar a conversão, e meu pai não foi salvo. Os médicos me disseram que esse era o seu “plano de vida”. Mas não era. O plano do meu pai ainda abrigava um processador Intel Core2Duo, beijocas na minha mãe, transições artísticas no Keynote, idas ao cinema, viagens com os netos e um iPhone 3G. Um Mac nunca morre, e meu pai também. Nos meus sonhos, vejo-o ligando para o Rafael da Officina para resolver o conflito operacional de seu coração. Steve Jobs tendo idéias cirúrgicas para recuperar seu sistema circulatório. Na química entre pai e filho, os conflitos têm soluções. A vida não faz backup, mas tenho muitas coisas arquivadas na memória. Muitos gigabytes de afeto pra serem processados. No meu HD há uma pasta chamada Vidal, e lá ainda vou colocar muita coisa. E, quem sabe, essas mal digitadas linhas cheguem até o meu pai lá no ciberespaço."
Pouco depois, os Performa 630 invadiram os supermercados. Comprei um. Tela colorida, drive de CD e modem. Papai ficava hipnotizado com os protetores de tela lisérgicos. Ria ao se lembrar das torradeiras e peixinhos do PC, em contraponto com as viagens delirantes do Mac. E me ligava no meio da noite para dizer que teclando Shift, Control e mais algum caractere fazia vodus inacreditáveis. Depois, ele descobriu o Claris Works que, antes da Microsoft, propunha uma convivência amigável entre texto, planilha, desenho, banco de dados, pintura e slide show. E a investida do sexagenário virou coisa séria. Ele começou a colocar no Mac, tudo o que sabia, de forma inquieta e criativa. Mostrou os trabalhos aos colegas e a reação química foi imediata. Uma obra inédita e inventiva. Nada de firulas e textos áridos. As presentations eram poemas concretos, ilustrados e atraentes. Meu pai foi convidado para ministrar cursos e palestras pelo Brasil. E lá foi ele, em um tour de dar inveja a qualquer popstar.
Durante anos, fez milagres convertendo arquivos para que rodassem nos velhos PCs das indústrias e universidades. Passou para o Performa 5500. Com o novo Office, a relação entre Bill Gates e Steve Jobs se tornava amistosa. A internet era rápida e meu pai pesquisava o uso do bambu como matéria-prima sustentável. Completou 80 anos online e com soluções avançadas. Convertia os amigos pecezistas à plataforma OS como convertia seus arquivos. O tempo correu e o Performa deu sinais de senilidade. Foi quando o eMac G4 branquinho pousou na mesa de seu escritório. Fotos, filmes e arquivos de áudio invadiram o HD. Downloads e uploads frenéticos. Pastinhas enchendo o iPhoto de orgulho. Músicas do Chico Buarque no iTunes. Mas algo ainda irritava. Na hora de se apresentar, um cedezinho na mala tremia de medo de enfrentar a antipatia de algum velho PC. Eu entendia a vertigem do meu pai e dei-lhe um iBook G4. O novo desafio: pilotar o dataShow. “Mas e os adaptadores de vídeo? Vão funcionar?”. “Leve todos, um deles tem que funcionar”. Funcionou.
Julho de 2008. Meu pai voltou orgulhoso de Blumenau. Próximo destino: Fortaleza. Combinamos que usaria o Keynote no lugar do PowerPoint. Um passo decisivo para se livrar das transições manjadas, gráficos de pizza e outras breguices. Mas outra viagem apareceu. Resolveu-se que papai trocaria uma válvula mitral de seu coração. Algo simples, como a troca de um pente de memória RAM. E dessa viagem ele não voltou não. A medicina não soube processar a conversão, e meu pai não foi salvo. Os médicos me disseram que esse era o seu “plano de vida”. Mas não era. O plano do meu pai ainda abrigava um processador Intel Core2Duo, beijocas na minha mãe, transições artísticas no Keynote, idas ao cinema, viagens com os netos e um iPhone 3G. Um Mac nunca morre, e meu pai também. Nos meus sonhos, vejo-o ligando para o Rafael da Officina para resolver o conflito operacional de seu coração. Steve Jobs tendo idéias cirúrgicas para recuperar seu sistema circulatório. Na química entre pai e filho, os conflitos têm soluções. A vida não faz backup, mas tenho muitas coisas arquivadas na memória. Muitos gigabytes de afeto pra serem processados. No meu HD há uma pasta chamada Vidal, e lá ainda vou colocar muita coisa. E, quem sabe, essas mal digitadas linhas cheguem até o meu pai lá no ciberespaço."
Fernando Salem in Revista Mac+
8 comentários:
E de vez em quando, ao jeito do FLIP: mac2, ainda se vai a essa pasta, para tirar duvidas...
Belo.
Pedro
Há quanto anos não levávamos com a palavra planilha ?
Mas
que extraordinário texto, não tenho palavras
Fabuloso
Como é que num raio de um texto com tantos termos técnicos, se encontra afinal um poema e uma, vá, duas declarações de amor?
Brilhante.
"A vida não faz backup"
nada a acrescentar senão para subscrever as palavras do Jonas e do Simão.
De encher a alma!
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