15 dezembro 2008
Os marcos
"Pedro, vai buscar a latinha e as chapas e vamos correr os marcos...". Era assim, mais ou menos, provavelmente sem as reticências, que o meu avô me dizia de tempos a tempos. Isto significava que eu ia buscar uma lata de tinta encarnada e um pincel que lhe estava sempre agarrado, ia no mesmo caminho agarrar umas chapas que eu achava muito curiosas, com as iniciais JN vazadas em folha-de-flandres e saíamos direitos às hortas em busca de marcos delimitadores das propriedades. Mais erva menos erva, endireita daí que eu cavo daqui, mais coisa menos coisa, a tarefa passava sempre por libertar o marco da vegetação que o envolvia (coisa rara porque naqueles tempos os campos eram bem menos verdes), aplicar-lhe no topo o rectângulo de chapa e pincelar o JN dentro do molde. Era assim que se faziam visitas regulares a bocados de terra onde raramente nos deslocávamos, salvo desgraça natural ou provocada. Era a mim que me competia pichar as letras desmaiadas por anos de sol e rasto de caracol errante e deixá-las vernelhas berrantes de fresco. Não me lembro quantas vezes fui "aos marcos" mas de quando em vez lá calhava. Em terra de minifúndio era assim que se reclamavam propriedades. Retalhos. Tabuleiros de terra e tudo o que nela estivesse contido. Aquelas iniciais gritavam a posse e valiam bem mais que uma caderneta predial. A história contemporânea portuguesa está cheia de paginas de sangue derramado em desavenças de água cortada e de marcos tombados ou arrancados. Arrancar um marco delimitador sem a autorização do dono equivalia a ofensa grave e era tido pelo ofendido como questão de honra. Trinta e muitos anos depois fui de novo intimado a "ir aos marcos". Não sei se as chapas ainda existem embora me não espantasse que sim, a tinta deve estar seca e nem falo do pincel que já com toda a certeza viu melhores dias. Pensei em ir munido de GPS, coisa moderna que faria com toda a certeza o meu avô sorrir e perguntar algo como "Olha lá, como é que isso pinta?".
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2 comentários:
É engraçado. Este texto fez-me "recuar" até aos meus 9/10 anos. O meu pai debruçado sobre a mesa a desenhar as letras dos "reclamos" para estabelecimentos comerciais. Tudo à mão, obviamente, e da régua, esquadro e compasso saiam letras perfeitas tipo "Times". Posteriormente eram copiadas para papel vegetal e redesenhadas em folha-de-flandres. Então a minha avó com a ajuda de um serra também manual muito fina recortava-as com uma perfeição incrível. Por fim uma pequena dobra em cada lado da chapa e a mesma era entregue ao pintor para executar a respectiva pintura.
Reconheço que tenho saudades....
Na mouche, meu caro Camilo, estas de que falo tinham apenas uma dobra, no topo das letras para se alinharem horizontalmente no marco de pedra ou cimento. Um cimento grosso onde era difícil um recorte de tinta perfeito.
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