03 junho 2009

A correnteza das correntes

Eu sei, eu sei, estou em dívida com alguns dos dilectos leitores deste pasquim e tenho pelo menos duas correntes às quais fui engajado (duas que eu tenha dado por isso...) e ainda não respondi. Uma do Jorge Mourinha sobre séries de TV (tenho de ir ler o enunciado que já não me lembro quantas são que tenho de indicar) e outra do "Embrulhar Castanhas" sobre 5 momentos que gostaria de rever (ou reviver) em slow motion. Ambas são excelentes desafios a que vou responder, isso é garantido, mas a minha agenda está o chamado caos e não tem sido fácil meter tanto pinto debaixo das asinhas...

Ladies first, prioridade ao Embrulhar Castanhas:

Momento 1: Os minutos que se seguiram ao exacto momento em que R. a professora de Português do Liceu da altura me apanhou a distraído a ler um livro "proibido" enfiado no meio de "Os Lusíadas" e me convidou a partilhar a leitura com os meus colegas de turma. Neguei-me, não me chamasse eu Pedro, por três veementes vezes a fazê-lo e mesmo sem o galo ter cantado fui confrontado com a alternativa, a expulsão da aula e consequente falta disciplinar, um negócio que estava longe de me agradar. Tentei a via diplomática, tentei ganhar tempo, mas R. foi inflexível: Ou lês ou vais para a rua. Terei tentado avisá-la, mas há coisas de que não vale a pena tentar convencer algumas pessoas, principalmente se são mulheres e detêm a professoral autoridade. Ergui-me, olhei-a nos olhos, suplicando qual condenado no cadafalso. Em vão. Enchi o peito de ar e declamei no melhor estilo dramático que consegui fazer: "Ela, gulosa, sorveu-lhe o mangalho rijo até à última gota..." O efémero exercício de leitura pública foi ali sumariamente interrompido e haveria de me levar umas horas mais tarde a uma conversa com R. sobre a minha pouca vontade de aprender Português, conversa que me foi de enorme utilidade futura. Isso e muito provavelmente a pensar duas vezes antes de pedir a um aluno que partilhasse em voz alta as suas leituras privadas.

Momento 2: Não posso precisar o ano, finais dos anos setenta. Eu, ali, nas bancadas do velho Estádio da Luz a sofrer e a torcer pelo nosso Glorioso debaixo de um sol inclemente. Era dia de jogo de título, em casa contra o Vitória de Setúbal, os dois pontos davam e sobravam para garantir o Campeonato, coisa que estava a minutos de acontecer. As bancadas em glória e júbilo a uma voz que recordarei enquanto viva e mesmo depois de morto não posso garantir que as esqueça, oitenta mil em uníssono "BEN-FI-CA, BEN-FI-CA" compassadas com as épicas patadas no cimento das arquibancadas, era o Inferno da Luz, aquilo era arrepiante, vinha lá do fundo do ser e marcava-nos a todos, arregimentando a erecção de todos os pelos, mesmo aqueles que no meu caso ainda estivessem por nascer e haveria de se provar mais tarde que assim era por força da penugem pouco mais que imberbe que tardava em fazer-se anunciar. Há num sector quem derrube a rede da vedação, ali estou eu, hooligan à espera de acontecer, a pensar para com os meus botões "Vou lá para dentro? Não vou?". O tanas que não vou, esguio e magro passo pelos intervalos da turba e ali estou eu no momento seguinte em cima do relvado, o mágico tapete sagrado que o comum dos mortais encarnados de alma e muito mais de coração não ousava sequer pensar vir a pisar. Ali estou eu, eu e mais uns milhares, comprimindo-se na linha lateral à espera do apito final, uma imensa mole nervosa a pensar em filar um jogador, capturar um troféu, um símbolo, qualquer coisa que provasse a quem me quisesse ouvir "Eu estive lá, ora babem-se!!". À medida que os minutos iam escorrendo dos velhos relógios de ponteiros brancos dos velhos marcadores do estádio, a multidão ia-se chegando mais um pouco, lembro-me de ter sido empurrado para lá da linha lateral e ter ali, à mão de semear, os meus heróis, era só esticar um braço e tocar neles. Ouviu-se um apito estridente, deu-se o estampido, toda a gente corre para agarrar não se sabe bem quem, eu tinha ali bem perto o Toni, o António da Conceição, espera aí que já te agarro, eu mais uma dúzia despimo-lo num ápice, filei-lhe uma meia, não houve tempo nem cabedal para mais, ele debatia-se para se tentar livrar daqueles abraços titânicos e foi mesmo debaixo dos meus braços que ele gritou, berrou mais apropriado seria dizer: "O JOGO AINDA NÃO ACABOU, CARALHO!", coisa que me deixou em estado de choque, porque não é todos os dias que vemos um Deus a blasfemar, aprendiz de hooligan, e ali estou eu chocado e quase envergonhado pela minha precoce invasão de campo (tinha sido apenas assinalada uma falta...), sem saber o que fazer perante aquela situação estranha, e lembro-me do inacreditável, era a única coisa que poderia fazer para emendar o erro estúpido, estendi a mão ao Toni, devolvendo-lhe a meia, acto espúrio e irreflectido, não pela devolução, não por mais nada, mas sim porque quando estiquei o braço tentando ingenuamente reparar o meu erro, nesse preciso momento um galfarro gordo e suado ma roubou da mão, a meia encarnada suja e suada, saque de cuja glória só pudera ser corsário durante uma fracção temporal.

Momento 3: "Há três espécies de homens: Os vivos, os mortos e os que andam no mar". Não sei quem disse ou escreveu, provavelmente um grego antigo, não me apetece ir procurar e mais a mais não sei bem onde, estou estendido num sofá à preguiça da vidinha quando me ocorreu escrever este texto e, all things considered, um grego antigo fica sempre bem num neurónio, faz-me lembrar um metro linear de lombadas douradas numa estante alta, daquelas onde nunca se vai a não ser para limpar o pó. Nem todos os momentos que gostaria de rever em câmara lenta são felizes, este é um desses, uma daquelas sequências que gostaríamos de ver outra vez, quem sabe para aprender do erro feito ou para nos felicitarmos a nós mesmos pelo acerto de uma decisão. "Ai é assim que é morrer?" lembro-me da frase pensada por mim próprio quando já estou a pensar em desistir, a boca a saber-me a sangue, a água salgada que me invade a garganta. Já não tenho forças, estou exausto e a pensar que não me livro desta, estou a centenas de metros da costa, a fugir de um turbilhão de mar de uma maré vazante que me faz recuar dez por cada metro que avanço à força de braçadas inúteis e que me puxa como um íman gigante. Somos três, há quase uma hora a apoiarmo-nos moralmente, haja calma, vamos falando, mantemo-nos juntos, ninguém entra em pânico se não é pior, vamos dizendo uns aos outros as mesmas palavras, sabemos que não é verdade mas não há nada de melhor para dizer ou pensar. Como ali chegámos é um cortejo de banalidades, "B'ora lá ao banho, mas temos de ir lá longe que a rebentação está forte". Fortíssima a rebentação, mais forte a imprudência, é longe o objectivo, ninguém quer dar parte fraca, avança-se para o perigo. É de pequenas coisas que se escrevem os grandes desastres. Quando as forças invisíveis das correntes nos afastam uns dos outros há tempo e oportunidade para rever o filme do tempo mais próximo e do que está longínquo. É o tempo de desânimo e da revolta. Do arrependimento ou da descrença. Já não vejo a linha da praia e continuo a ser tragado pela corrente. Perco as forças. Aparecem as primeiras cãimbras a anunciar o sobre esforço. Tenta-se a luta desigual com o mar que parece disposto à negaça da sobrevivência. Tenho frio, tenho um medo grosso que me faz perceber que há coisas que a partir de certo momento são absolutamente inevitáveis. Tento boiar, recuperar o fôlego num peito que parece um fole de forja, e até boiar me parece já difícil senão desnecessário. E é nessa pausa, de olhos cegos pelo sol e pela água em que me sinto momentaneamente a afundar, que penso "Ai é assim que é morrer?". É quando respiro a primeira golfada de água e vejo a luz do sol coada pelo mar verde em que me afogo, que desperta em mim o instinto da sobrevivência primária, da reserva física a que recorro perante o meu próprio assombro. Hei-de chegar a terra longos minutos depois. Hei-de olhar o mar de lado zombando da situação, num aperto de alma que terei o azar de repetir anos mais tarde num incidente náutico. Mas será diferente, por via da experiência. Não voltarei a pensar em desistir.

Momento 4: Fui sempre um péssimo aluno a Matemática. Dou-me tão bem com a Álgebra como com as favas, sigamos o cherne, foi amor que não retive (ou se calhar distraí-me) qualquer coisa correu mal. Era garantido o asco à disciplina, aluno de 1 provavelmente porque não havia lugar a zeros, menino de pegar na folha de ponto e traçar-lhe um risco de alto a baixo , adeus, foi um prazer, vou-me embora. Levei anos a preencher essa lacuna, a Matemática era garantidamente uma cruz pesada de carregar e o meu calvário só dava mostras de algum alívio no final do ano, onde sucedia o suave milagre. Eu explico: Odiava a Álgebra, deduzo que ela me odiasse a mim também e oh se ela retribuía, a cabra, durante dois períodos escolares. O terceiro era consagrado à Geometria e Deus saberá porquê, aí era a minha praia. Nunca percebi das razões da minha extraordinária aptidão para a Geometria, mas também nunca perdi muito tempo a investigar. Garantidos que estavam as duas notas "1" no primeiro e segundo período, fazia o terceiro com notas brilhantes, por norma um "5", que me garantia no Conselho de Notas um arredondado (e esforçado) "3". Não tinha que saber, enquanto a malta arranhava a Álgebra durante dois períodos eu decorava os problemas que haveriam de vir de encontro a mim lá mais para o fim do ano, chegava a ter os enunciados de cor, mais as resoluções, das mais simplificadas às mais complexas, não havia ali absolutamente nada que escapasse ao meu rigor científico. Cheguei a ter de inventar desculpas e subterfúgios para que ninguém percebesse que enquanto se marrava em equações eu deglutia cónicas áreas, graus, tangentes e outras variáveis. Era preciso garantir um terceiro período de notas brilhantes para escapar à negativa média. Custasse o que custasse. E eis-me ali, chegado ao último teste do ano, perante o último problema proposto, a começar a ficar nervoso perante o enunciado que até então fora costurado a preceito. Uma tentativa, duas tentativas, três tentativas e nada. Começo a rabiscar, começo a sentir os olhares inquiridores dos que me rodeavam, que eram por norma quem me inquiria e recebia a folha da solução (agora já posso dizer...). Nada. Engatado, ali à mercê da minha ignorância e a começar a temer (e a tremer) defronte do insucesso anunciado. A professora aproximou-se, senti-lhe o olhar cravado nas costas, observou demoradamente o rascunho, eu de sorriso amarelo, ela algo admirada e em pose de clara vitória. "Então? Há azar?". Havia e era meu, oh bruxa, nunca o disse mas não posso negar que o não tenha pensado. Tinha ainda tempo, quase trinta minutos para meter ombros ao científico calhau e fazê-lo rebolar encosta acima era o meu objectivo imediato. Eu sabia que ela sabia o que era do conhecimento de ambos. Eu precisava daquela percentagem da nota, morresse quem se negasse... Revi os meus rabiscos, a bem dizer tive de os refazer, mais uma ou duas vezes. Ah desdita! Oh ignomínia! Podem vir todas se é que cá não estão já! Num assomo de coragem, peito inchado como um peru furioso, ergui a voz num brado "Este enunciado tem um erro!". Era o desespero das causas últimas. Eu tinha apenas uma suspeita, nada mais do que isso. "Ai sim? Ai está errado?" disse ela ironicamente. "Então vai lá ao quadro e mostra a todos os teus colegas onde é que está o erro! Aviso-te já que fui eu que criei esse problema...". Subi ao estrado como um Távora em Belém... Aquilo não foi bem subir, foi mais descer aos Infernos. Peguei no giz e fui traçando a minha teoria. Recta ali, circunferência acolá, medidas disto, medidas daquilo. "Voilá!" (disse mesmo um Voilá que me saiu do fundo da alma). A turma calada, sem um ai, ela ali, à minha frente, revendo mentalmente o diagrama, aqueles segundos foram muito rápidos, terminaram no aceno de cabeça dela, xeque-mate, mate o senhor, o senhor é parvo, secundado pelo aplauso dos colegas que viam ali mais do que um erro, uma vingança colectiva sobre o sabor do saber. Fui salvo pelo toque estridente da campaínha e fui no turbilhão de gente que se precipitou para a porta depois de entregue o malfadado teste. A mim soube-me como se fora eu El Cid a sair em ombros, duas orelhas e um rabo. Olé!

Momento 5: O tempo real deste momento já decorreu. Ponto. É isto mesmo. O momento decorreu na realidade enquanto você. amigo leitor, decifrou a primeira frase deste texto. É por isso mesmo (e por algo mais, é certo) que gostaria de o rever em slow motion. Aliás, nem sei se gostaria mesmo de o fazer. Nunca fui adepto de mega-diversões de parques temáticos. Não fujo delas, as montanhas-russas, por fraco exemplo, mas não serei com toda a certeza o primeiro a fazer fila para ir sofrer. Montanhas-russas, rodas de força centrífuga, canhões disto ou daquilo, façam o favor de não me convidar que eu até agradeço. Não é que me falte a coragem física das coisas, tenho a certeza de ter conduzido durante anos como um louco (passa-nos com a idade e com a apreensão da realidade). Falta-me a sensação de controlo, de ser eu ter inteiro domínio da situação. Preciso de comandos, alavancas, botões e pedais para me sentir mais capaz. Não preciso de sentir o medo, nem a adrenalina a fluir mas se os quiser, tenho de ser eu a ordenar o meu tempo. Mas ali não podia escapar... Era um evento de um fabricante, parceiro das minhas lutas profissionais. Uma gigantesca operação de team-building onde gente daquele grupo oriundo de toda a península se agrupava em pequenas equipas com um objectivo comum. A minha tarefa naquele momento: Deixar-me levar para o alto de uma torre de cem metros, sentado numa cadeira que se precipitaria de seguida em queda livre até ao solo. Previ tudo. Sabia, pela observação cuidada das vítimas anteriores, quanto tempo exactamente levaria a subir, quanto tempo a cadeira pararia lá no alto até se despencar cá em baixo. Previ, anotei e instruí-me de todos os detalhes que de absolutamente de nada me valeram. Quando a escala das coisas se começou a modificar no momento da subida aos céus, percebi que tudo era diferente no solo. Muito diferente. Na cadeira do lado estava outro português, que, quem sabe, poderá vir a ler este texto (um abraço, João!). A meio dos cem metros aqueles que eram pessoas de tamanho normal passaram à escala de jogadores de Subutteo, tudo era mínimo, tudo era assustador. Lembro-me de ter dito ao João quando a cadeira se imobilizou lá no alto: "São dois segundos que isto leva a..." e foi num "Clanc!" que tudo se precipitou, dois segundos de puro terror até a hidráulica do sistema cumprir a respectiva função. Não pense o leitor que é fácil a descrição de uma queda livre sem controlo. Mecanicamente é impossível mexer um músculo, apenas se tem a sensação de peso da cabeça, o resto é como se não existisse. Dois segundos de terror. Irrepetível. Refizemos (eu e o João) aquela descida por mais meia dúzia de vezes. Nada, mas absolutamente nada é comparável à primeira queda no desconhecido, apesar das muitas tentativas feitas. É talvez por isso que quisesse estes dois segundos de volta.

E pronto, está feito. Dizem as regras que temos de convidar blogs para responder a idêntica oportunidade, estais todos convidados. Só vos peço que caso respondam, deixem aqui um comentário para a gente lá ir cuscar...

9 comentários:

Tuaregue disse...

O livro proibido era a Guida não era? He He

Jorge disse...

Guida? Não era a Gina Das Cores Desmaiadas?

Garraio disse...

Pedro, acabo de comprar uma "quota nesta sociedade". Tenho aqui uma série de pérolas e diamantes em bruto para lhe enviar, mas o seu email não funciona. Por favor, contacte-me, antonio.garraio@sapo.pt

Anónimo disse...

Ser espoliado de uma preciosidade como uma meia do Toni é, deveras, um episódio que deixa marcas na vida de qualquer Benfiquista.

O Gato Preto disse...

Somos gémeos no momento 4 , Comigo passou-se o mesmo com a geometria, era eu que dava as aulas e a professora ficava a ver e a aprender, tive ainda um de Matemática que dizia que não dava 20's e punha sempre um problema muito difícil que valia 2 valores, eu ou tinha zero ou tinha 2 e ia resolver ao quadro o problema que ninguém conseguia, e o prof. dizia:
Porque não resolves o resto do teste?
Ao que eu respondia:
-Não percebo a pergunta "Resolva a seguinte equação"

Castanha Pilada disse...

A primeira é um clássico. Fiz o mesmo a um aluno uma vez, quando ainda dava aulas. Esse sim, foi um momento que eu gostava de rever em slow-motion. Ele, não tenho a certeza.

Pedro Aniceto disse...

E o que é que ele estava a ler?

Castanha Pilada disse...

Já nem me lembro, mas quer o papel quer o design da cena eram rascas.

andré henriques | Ah!photo disse...

Penso que a frase que mencionaste é de Platão.