07 abril 2010

Parabéns!

Texto já publicado em Dezembro de 2005, tendo agora sofrido ligeiras alterações na prosa.

Disse-me um dia um pássaro que se não existissem margens os rios seriam mares. Mas, tal como o pássaro, digo-me agora que é como um rio apertado que me sinto, e que me sento, num estreito corredor que está, como uma foz segreda ao rio, a desaguar para o hall da maior Maternidade do país.

É como se um pulmão enorme respirasse lá de dentro. Há uma corrente de ar que vem da rua, uma enorme golfada de ar frio que pacatamente regressa já quente e grossa quando os corta-ventos do outro extremo se abrem para deixar sair não só o ar, mas como muitos daqueles que ainda há poucochinho o respiram, embrulhados em mantas e bercinhos, fraldas e rendinhas, frágeis como penas e decorados com pássaros, desses que nos falam mesmo que em sonhos.

Há um certo ambiente tenso na face de quem entra, alívio na de quem sai e dou comigo a memorizar caras e trejeitos de quem ainda agora eram dois, pai e mãe, quem sabe se por vezes mãe e marido já que amante e pai me soa por demais a improvável, para amanhã crescerem e se multiplicarem, saindo aos trios e às quadras se isentarmos do censo um rancho de avós babadas que nestas ocasiões sempre aparece, que o mal de outrém sempre é o bem de alguém. As avós são no milagre da multiplicação as mais beneficiadas, que passam de sogra a avó sem um único ai de parto, como se passassem pela casa partida e recebessem dois contos, embora isto mais não sejam do que pensamentos de um desocupado turista hospitalar.

Dou comigo a assistir ao registo do milagre da multiplicação dos que vivem, apenas ao registo, que hão-de nascer, quem sabe se com saúde e bons pulmões para este ar frio que me obriga ao refúgio, daqui a mais algum tempo, perfeitinhos como se querem as avezinhas.

É neste ponto em que me encontro que vejo desfilar um país que sai, sempre entalado entre margens, parece sina de quem nasce, isentemos as cesarianas, que sai para a rua consoante a sua condição. Berços de marca, mini cobertores, alcofas pobres e ricas e mantas coçadas estabelecem as margens, as tais que são existissem tornariam os rios em mares.

Há risos e palmadas nas costas dos amigos, cortam-se fitas a charutos e há garrafas miniatura que circulam de mão em mão dos que estão fora da ombreira. Há, de quando em vez uma voz que chama, quem sabe a anunciar outra que grita, ainda que há pouco e quem sabe por muito. Falo do tempo que há-de vir e do próprio porvir.

Alguém me toca nas costas. "Parabéns!" Sorrio devagar e pouco surpreendentemente não é comigo (com toda a certeza), ou se o é chegaram as felicitações quarenta e um anos atrasadas, foi pena não teres cá estado num dia de Primavera frio como este, se calhar bebia um trago contigo para aquecer o que quer que fosse necessário. O homem sorri e desculpa-se do engano. "Você é parecido com o meu cunhado, esteve quase a levar um calduço, mas parabéns na mesma e se não for agora que seja quando for preciso".

É um mar de abraços em que vogam flores. Não posso dizer-lhe muito. Eu não o conheço e não vou agora abrir-me com ele,não me parece próprio. Eu próprio acho curioso estar aqui porque nasci se bem que há quarenta e um anos, mas hoje estou aqui porque a minha mãe está lá em cima e isso é incompreensível para quem como eu vê desfilar mães, filhas, filhos, amigos, namorados e amantes, agora muito menos improváveis depois de três ou quatro goladas das garrafas miniatura um tipo é capaz de tudo, tudo isto cá em baixo, onde não é menos improvável que estejam os filhos que já nasceram, que por norma ficam lá em cima junto das mães.

Aquilo que realmente interessa é que ela esteve lá em cima há quarenta e um anos, para que me fosse a mim possível estar cá em baixo. Hoje.

Apeteceu-me fingir o engano e abraçar o homem e dizer-lhe quem sabe, parabéns, se não for agora que seja quando for preciso. Desafiá-lo a aceitar um copo improvável e falarmos de futuros daqueles que nem presente têm ainda. Há uma certa maré alta de emoções à porta da Alfredo da Costa. Como se um pássaro lhes tivesse dito a todos que se não existissem margens os rios seriam mares.

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