"Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar."
Jangada de Pedra - José Saramago
"Foi só muitos anos depois, quanto o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não podería significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver."
Memórias - José Saramago
18 junho 2010
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2 comentários:
Confesso que emocionou-me muito a partida desse cidadão do mundo. Uma vez, em um programa de TV do Brasil (Programa do Jô), foi-lhe perguntado se ele sentia algum tipo de rejeição ao fato de que ele, Saramago, expressava suas opiniões abertamente sobre o Brasil. Encantou-me o fato de que ele disse que "Não, porque, em primeiro lugar, é o Brasil, e, por isso, não somos exatamente tão distantes assim, e segundo porque somos todos humanos" (ou algo assim).
A falta da sua inquietude será imensa.
Espero que também ele tenha tido tempo de se despedir das suas árvores.
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