07 junho 2011

De um aperto de mão selado

Reparei neles à saída da carruagem, naquele preciso instante em que as portas se abrem e se processa o encontro das marés. Aquele preciso momento em que as pessoas apenas parecem alimentar-se em compita na babugem, quando se entreolham como cavaleiros numa justa de lança em riste, precisamente antes delas se tocarem, as lanças e as pessoas. Havendo dias em que me sinto capaz de encher o peito e avançar de viseira baixa, não era um desses dias. Deixei sair a primeira onda, deixei o refluxo da maré encher a porta da carruagem e só aí saímos. Sim, disse saímos. Foi aí que reparei neles, já tinha dito, pois é, é próprio das urbes nós dizermos as coisas e ninguém parecer tomar nota. Ela, de tailleur castanho e brincos de pérola, desajustados, os brincos e eles, que de num boné de padrão difuso pareciam assustados demais para perceber o que se estava a passar, como se fosse difícil perceber a estupidez dos rebanhos em estampido e Deus sabe como é realmente complicado. Ela, retorceu a pequena alça da mala de ver-a-Deus, que Ele me perdoe mas é assim mesmo que o desenho foi feito na minha memória e saiu atrás dele que por sua vez saiu atrás de mim, é a tática dos cardumes que o instinto de sobrevivência nos embute no ADN desde que somos alguém. Não sei onde perdi a minha pressa naquele dia, a verdade é que a não tinha (ou por qualquer razão a não queria ter). Estávamos ali os três, como que suspensos de algo, parados na plataforma que como por magia se tinha esvaziado, um vento apenas soprando a encher o vazio do comboio que entretanto partira. Virei à direita, eles ficaram. Dei dois passos e nessa pequena distância arrependi-me de não ter ficado também ali, suspenso, como que flutuando frente a um cartaz luminoso que para a maioria de nós é banal, mas que para outros é como um mapa do tesouro. Voltei atrás. Não era difícil de perceber que estavam atarantados, coisa que acontece a qualquer ser humano um ou dois segundos antes de tomar consciência de que estavam perdidos. "Precisam de ajuda?". Ela sorriu mas não disse nada, como que esperando a autorização do marido para o confessar. Foi ele que me dirigiu a palavra. "O senhor sabe para que lado fica o Saldanha?". Sabia. Sabia mas estávamos longe, nas entranhas de uma estação que agora tem dois Saldanhas. "Para que sítio do Saldanha querem ir?". Foi ela que puxou de um envelope amarrotado com a morada de um consultório médico. "Venham comigo, é mais fácil do que explicar e é fácil que se percam daqui até lá". Percorremos em silêncio absoluto as galerias, escadas e plataformas. No local onde os nossos caminhos se separavam, disse-lhe apenas "Agora vá em frente, o prédio fica mesmo defronte da escada quando chegarem à rua". Ele percebeu naquele instante que era ali que ficaria de novo dono do seu destino, ela sempre na sombra protectora da imagem dele. "Tenham uma muito boa tarde". Foi então que ele teve aquele gesto que os estranhos nunca têm. Apertou-me a mão com firmeza, não sem antes colocar a outra mão por cima de ambas, aquele aperto que sabemos querer dizer alguma coisa. E disse. "O senhor é de Lisboa?". Respondi que sim, embora pense sempre que não. "Sou sim.". Não foi suficiente, ele parecia desapontado. "Os seus pais são de Lisboa?". Não, não são, embora pense sempre que sim. "Bem me parecia! Bem me parecia!".

4 comentários:

pbl disse...

Grande momento.
Narrado com excelência.

Patricia Lousinha disse...

:)

A.Carrilho disse...

Mais profundo do que parece. Ficou a faltar uma melhor descrição "deles". Eu acho.

Pedro Aniceto disse...

Um dos meus maiores "dramas" no que aos textos dizem respeito é que, a cada leitura, modificaria sempre algo. O A.Carrilho tem razão e eu tenho uma explicação. Estúpida, mas é uma explicação. Mudei o setup da minha secretária e o setup actual é uma merda. É incómodo. Até o alterar, a minha posição de escrita é um horror. E pensar em alterar qualquer coisa sem estar confortável, está fora de questão...