16 julho 2011

Um imenso amor azul

(Nova publicação de um original de 2005)

C. mora desde que se conhece, e já se conhece há quase sessenta anos, à sombra do Estádio do Restelo, couto sagrado aos seus olhos e consciência belenense. C. era, nos seus anos mais viçosos um "pardal" de Alcântara, no tempo em que Alcântara mais não era que um imenso quintal dos quintais de Lisboa. Pelas palavras de C. sou levado a montes e valados, quintas e casinhas, pomares e pedreiras, como se tudo não fossem já águas passadas, levadas e lavadas por um Tejo ali a dois passos. Ouvir C. falar dos seus tempos de criança é uma imensa viagem e apesar de o já ter ouvido muitas vezes, nunca se cansa a canseira de o fazer.

"Não sei porque sou belenense, não se explica, aliás Pedro, tu sabes que nessas coisas não se deve insistir, um tipo é o que é e pronto, cada barco tem a sua carreira, a minha parou em Belém e está tudo dito, não é?". Pronto, eu percebo, bebamos mais um copo aqui nesta esplanda em que transformaste a varanda do prédio onde vives e onde estamos. E estamos muitíssimo bem, em frente o azul das bancadas despidas a esta hora (e mesmo durante os jogos, acrescento eu mentalmente, porque não teria coragem de to dizer na cara, embora o saibas e isso te desgaste e desgoste), o relvado a gozar as delícias de uma rega de fim de dia, as balizas ali, brancas e impávidas a recuperar momentos nervosos de um e de outro lado. "Sou sócio desde os 18 anos, mas nunca vi um jogo sentado naquelas bancadas". Não me admiro. Aquela varanda vale por uma tribuna VIP, tem lugares marcados e sítios próprios para as crenças de quem ama o futebol, o vaso que tem de estar ali senão dá "galo", o guarda-sol que é arrumado para que o vizinho do lado possa gozar da vista toda, um conjunto de tradições que o teu filho já segue, ainda que se esqueça de um ou de outro preceito de quando em vez.

"Daqui da rua ao Vale de Alcântara não era propriamente perto, hoje um tipo apanha um eléctrico e está lá em dez minutos, mas antes não era assim...". Eu sei, também fui um viajante pedestre de Lisboa nos tempos em que o dinheiro não era para ser esbanjado em bilhetes de carro eléctrico. "O meu pai era serralheiro na Carris, e era eu que lhe levava o almoço. A minha mãe dava-me a lancheira dele pelas onze e eu ia levar-lha às Oficinas da Carris." Também conheci o ritual, não durante muito tempo é certo, mas também por aí passei.

"Almoçava muitas vezes por lá, eles tinham um autocarro velho que servia de refeitório, tinha mesas e cadeiras, aquilo era giro, era diferente e havia sempre uns mimos e umas buchas que me davam. Quando tocava para pegar ao serviço da parte da tarde, eu arrumava a tralha e vinha por aí fora a corta-mato, depressinha para ir para a escola". "Foi por essa altura que fiz a minha profissão de fé Belenense". Como? Conta lá essa que nunca ouvi.

"Espera, acho que poucas vezes contei isto, mas tu percebes-me com toda a certeza...". "Um dia houve em que os colegas me perguntaram qual era a minha equipa... Aquilo era tudo lagarto e lampião, até o meu pai torcia pelo Atlético, que Deus o tenha em descanso que ao Atlético já pouco falta, ai se ele me ouvisse!". "Eles tinham comprado um melão para a sobremesa, quer dizer, não sei se compraram, mas que ele estava lá, estava, amarelinho a rir-se para mim e se eu me pelava por uma talhada de melão. Percebi logo que tinha que dar a resposta certa, senão não cheirava sequer o melão... Aquilo custou-me muito, Pedro, custou-me muito. Quando o tipo me fez a pergunta eu quase estremeci, ia ter de dizer uma grande mentira. Não era pela mentira, era pela traição, percebes? Logo aquele, o Costa nunca mais me esqueci do nome do gajo, que não gostava do Belenenses nem um bocadinho... Mas enfim, lá fui enrolando, enrolando e acabei por comer o melão sem ter traído a consciência, pensei até que ele se tivesse esquecido.

O problema é que ele não se esqueceu. Estava eu a arrumar as coisas para me vir embora, já eles tinham saído todos do autocarro, quando vi que tinham fechado a porta, e eu ali, aflito para me ir embora, que a minha mãe dizia-me das boas quando me atrasava... Eu bem que a tentei abrir, mas aquilo tinha um fecho pelo lado de fora e as janelas tinham rede... E lá estava ele, encostado à porta a perguntar - Qual é o melhor clube do mundo? Qual é o melhor clube do mundo? E eu nada, nem tugia nem mugia e ele a rir-se, o cabrão, sem parar com a pergunta - Qual é o melhor clube do mundo? Qual é o melhor clube do mundo? e eu sem saber o que fazer. Então, mas como é que resolveste o problema? "Então, lá tive de dizer que era o Benfica, mas disse baixinho para ninguém ouvir..." Como é? Não ouvi nada! Benfica. Mais alto, mais alto que não ouço!" Benficaaaaa!. "Mas fiquei lixado, fiquei mesmo muito chateado, aquilo foi uma violência...! Assim que me apanhei livre, corri para o portão, desatei a fugir pela Junqueira abaixo, direito ao Altinho, sabes onde fica, não sabes, acho que nunca mais quis saber da lancheira e quando entrei nas Salésias, senti assim uma coisa pela espinha abaixo, fui ao meio campo, aquilo já estava um bocado decrépito, já nem tinha balizas nem nada, mas procurei o meio do campo, pus as mãos em concha à volta da boca e gritei o mais alto que pude:
"BELÉÉÉÉÉM! BELÉÉÉÉÉM! BELÉÉÉÉÉM! "

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