26 setembro 2011

António Livramento

O Pedro Ribeiro escreveu um post que me despertou uma memória. Leiam isto primeiro, antes de lerem a minha necessariamente curta memória.

O "meu" hóquei em patins é uma coisa muito própria. Eu teria para aí uns sete, oito anos e muito antes de sequer pensar em gostar de futebol, era um amante de hóquei. Sabia tudo sobre equipas, clubes, troféus e conquistas. Sobre épicas vitórias e saborosos troféus. Recitava equipas de hóquei como hoje sou capaz de recitar características técnicas de equipamentos. Eu era o "doidinho" do hóquei. Não gostava de jogar matraquilhos nas tardes ociosas da minha vida de índio urbano, mas dava moedas de cinquenta centavos para uma mesa de matraquilhos de hóquei, uma mesa que só os verdadeiros amantes da modalidade sabiam que estava logo à entrada do Jardim Cinema. Vivia tudo pelo rádio. sim, que havia relatos de hóquei épicos na Rádio. Aborrecia-me por vezes ter de acordar às quatro da madrugada para ouvir um relato do Portugal-Chile jogado num fuso horário que não interessava ao Menino Jesus, e isso implicava roubar do quarto dos meus pais um velho despertador daqueles que quando lhes tocamos fazem "ploing" por causa das enormes campainhas metálicas que possuiam. E implicava também desviar da atenção do meu pai o seu mais precioso rádio de onda média (ninguém ouvia FM, oh Ribeiro...) e enfiar-me na cama com o mono do Toshiba "caído de um camião algures em Alcântara", com os cobertores por cima da cabeça para que ninguém ouvisse quer o despertador, quer o senhor da rádio (Dias Agudo?) aos gritos de Portugaaaaaaaaaaaal, Portugaaaaaaaal!. Andei anos nisto. Todas as minhas memórias de hóquei em patins eram coisas virtuais, sem qualquer ligação com a realidade. Porque a verdade, verdadinha, era só uma, os filhos do proletariado não iam a estádios, pavilhões ou outras manifestações desportivas. Porque éramos uns tesos, coisa que não se alterou muito. Eu nunca tinha visto hóquei na vida, quanto mais um stick, Apenas fotos nos jornais.

Mas há um dia em que os sonhos, as memórias, as divagações se quebram. E as minhas foram quebradas em 1974 no preciso dia em que, depois de ter rondado o Pavilhão dos Desportos de Lisboa, paredes meias com o local onde morava (ia chamar-lhe casa, mas era injusto...), percebi que num dado Sábado se iria ali jogar um Portugal - Índia a contar para um Campeonato do Mundo. Descobri isto numa quinta-feira, o jogo era no Sábado, ainda pensei em entrar lá para dentro, esconder-me e só regressar ao exterior depois do jogo ter acabado, mas era capaz de ser demasiado, a verdade é que ainda fiz contas de cabeça ao número de latas de atum que seria preciso armazenar, mas não havia tempo e possívelmente a Maria Fernanda, senhora minha mãe, não teria em casa as latas suficientes.

Tracei outro plano, decidi que nesse Sábado iria para o Pavilhão e oferecer-me-ia para carregar coisas (método assaz usado nestas incursões de sítios com bilhetes para pagar...) e acabaria por lá permanecer e ter acesso ao dito jogo, que diga-se de passagem me provocou sonhos húmidos no escasso número de noites que antecediam essa grande noite. Poupar-vos-ei os detalhes sórdidos, fiz o que tinha a fazer, e lá estava eu na bancada do actual Carlos Lopes (Santo Deus, a pena que tenho de ver aquele pavilhão entaipado e em perfeita ruína...) prontinho a devorar até ao osso um jogo que eu nunca tinha vislumbrado ao vivo.

Foi aí, ainda nem o jogo tinha sequer começado que os meus sonhos e memórias se começaram a estilhaçar. Quando a equipa portuguesa começou a aquecer, e os primeiros remates à baliza de Ramalhete começaram a embater com estrondo (e que estrondo) na tabela final, nada do que durante anos se tinha formado na minha cabeça como aquele desporto em que a bola deslizava na pista com grande suavidade, era tudo uma enorme mentira cruel, pois aquela bola podia de facto matar alguém que lhe atravessasse ao caminho... A estocada final, essa foi cruel, muito cruel. Eu vi, com aqueles olhos de quem tudo vê pela primeira vez, António Livramento, aquele que todos os que amavam o hóquei patinado queriam ser, levantar a bola numa recuperação atrás da baliza portuguesa e levá-la, ali, como que colada na ponta do aléu, sem que ela tocasse no chão, e desferir um remate vigoroso à altura da cintura levando o Pavilhão ao rubro. Aquilo não era o "meu" hóquei, era outra coisa completamente diferente. Aquilo não era épico, era uma crueldade. Nunca mais vi um jogo ao vivo, se bem que continue a amar a modalidade. Foi o meu ídolo que me estilhaçou o sonho. Com um único remate. Uma obra de arte, diga-se, mas uma enorme maldade.


P.S.- O jogo em si não teve grande história, os indianos levaram cerca de trinta sem resposta e foi a primeira vez (e penso que última) que vi um guarda-redes de hóquei defender de pé...