Durante um ano, mais coisa menos coisa, vivi sozinho num prédio de seis andares. Era estranho, por vezes um pouco desagradável mas isso permitia-me alguma liberdade em relação aos vizinhos que não tinha. Os andares tinham todos dono, só não estavam ocupados. Era a minha primeira casa e ocupei-a ufano, com parquíssima mobília, a maior parte dela descartável, com muita marca informática a fornecer caixas de cartão para a concepção de estantes e mesas de cabeceira. O espólio era mesmo muito curtinho e incluía uma TV improvisada a partir do tuner de um vídeo e de um monitor Commodore (sem som). Um dos equipamentos electrónicos que entrou nessa fase foi um despertador. Coisa fina. O tradicional monte de plástico oriental com display numérico e um botão de snooze que massajei durante muitas vezes. Aquilo era impressionante. Tinha rádio mas eu nunca gostei de acordar com pessoas a falar como se estivessem permanentemente felizes, por isso escolhi sempre o sonoro apito que tantas vezes me fez acordar como se estivesse num engarrafamento. A casa vazia ajudava ao susto. Era como se um hooligan de buzina de sopro esperasse que eu estivesse profundamente adormecido e me encostasse a corneta ao ouvido. Mas funcionava e deixava-me com uma neura épica. Um belo dia, bem antes da buzina me fazer subir o ritmo cardíaco, tocaram-me à porta. Às seis e meia da manhã. Já de si extraordinária a hora, mais ainda por ser um prédio quase vazio. Fiz disparar o trinco do rés do chão mas não ouvi a porta bater, o que me fez espreitar o óculo da porta que separava a minha nudez de uma silhueta vestida de negro que estava do outro lado. Vesti-me apressadamente e abri a porta à inesperada visita. Foi curto o diálogo, aliás chamar-lhe diálogo é manifestamente um exagero.
"Eu sou a sua vizinha de baixo", disse ela enquanto eu pensava em algo simpático para responder, mas ela não deixou. "Vivo em França há 39 ianos", sim ela disse ianos, eu estou semi despido, ensonado, mas ainda ouço bem. "Só cá venho de férias uma vez em cada Verão". A minha simpatia continuava a acumular-se ali, quase desperdiçada e sem uso. "Venho descansar, sabe?". "O senhor também vai de férias, não vai?". Consegui finalmente falar. "Sim, acabei de regressar de vinte dias no Algarve". "O seu quarto é por cima do meu" e aí eu comecei a fazer revisões da matéria dada não fosse algum excesso ter incomodado a senhora... "Então", disse ela com um brilho assassino no olhar, "desligue a merda do despertador que todos os dias me acorda às seis e meia da manhã e que fica a tocar alto durante uma hora e que não me deixa dormir. VINTE DIAS A FIO! Pensei em desejar que um buraco se abrisse debaixo dos pés, mas era melhor não, reconsiderei. Iria cair-lhe, provavelmente na cama...
2 comentários:
Ahahah! Muito bom!
Failurists never cease to amaze!
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