31 janeiro 2006

Estás melhor agora?

F. não resiste ao jogo. Está-lhe no sangue e com o sangue não se luta, quando muito permitem-se algumas escaramuças, mas a rendição é certa sem ser necessário chegar-se ao segundo round. Um desafio para uma sueca, dez cêntimos a vasa já chegam para adormecer F. e fazê-lo esquecer obrigações, devoções e outros rituais diários. O local pouco importa, seja na roda de velhotes sentados à mesa do jardim, na viagem de barco para Lisboa, ou até na sala de espera do Centro de Saúde. Já foi um problema sério, agora não passa de uma compulsão semi controlada. F. disciplinou-se, continua a jogar mas sem o fulgor de outrora. Falta-lhe a vista e falta-lhe a memória. atributos fundamentais para se dominar os prodígios da sueca a dinheiro. Agora, idos já os tempos da glória lambida, diverte-me vê-lo ensinar aos mais novos algumas das manhas e truques do carteio, ardis da troca de sinais.

Embevece-me (e estarrece-me) ver que dois jogadores profissionais podem comunicar por sinais inimagináveis. Vejo F. mostrar à jovem assistência que dois parceiros podem pedir um ao outro um determinado naipe através do copo de cerveja que ambos bebem, dando golos mais ou menos prolongados num líquido cuja espuma há-de marcar o copo em sequências de anéis brancos. É verdade que nunca fui grande jogador de cartas, mas estou absolutamente absorto na explicação. É quando entra na conversa um outro ex-jogador, cúmplice e parceiro de F. em muitas ocasiões. "Oh F. tu lembras-te uma vez que ganhaste um galo a um gajo do Montijo?". A plateia agitou-se, F. sorriu meio constrangido. "Pois é, este melro um belo dia desafiou um tipo para uma jogatana... A parada foi subindo, o outro não tinha muito dinheiro, mas tinha um galo!". F. agitou-se na cadeira. "Lá ganhou o galo ao outro..." Não percebi o espanto, o parceiro calou-se, F. ria baixinho. "Oh meus senhores, isto a quem sabe nunca esquece, vocês nunca se deixem entusiasmar pelas histórias deste melro porque agora ele só conta o resto se lhe pagarem uma imperial!".

Sinto-me apanhado. Aceno ao empregado que por detrás do balcão não perde pitada. Parece um leilão, um aceno afirmativo faz subir o meu débito no balcão mas garante-me a continuidade da história. "Era uma estampa, o galo!". Um gole na cerveja, a língua que passa a limpar a espuma. "Aqui o F. tinha vindo de bicicleta e atou um baraço à perna do galo mas o raio do bicho não parava quieto e de cada vez que batia as asas fazia voar as cartas de cima da mesa...". "Houve mais um jogo e as coisas não estavam a correr lá muito bem, começámos a perder que nem uns anjinhos e o F. já estava a ficar chateado; era o galo que dava galo, dizia ele! O bicho não parava quieto um segundo e o F. pediu um saco de plástico à dona do café e meteu-o dentro do saco e atou tudo ao quadro da bicicleta...". "Aquilo correu mesmo muito mal! Perdemos um bom bocado de dinheiro, até tive de meter algum pelo F.". "Quando chegámos cá fora, o bom do galo não se mexia dentro do saco, o F. desatou o baraço e não é que raio do galo estava morto?". F. levantou-se ligeiramente irritado pela memória. "Estás melhor agora? Eu teso e tu morto!"

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