12 janeiro 2006

A gente não lê

C. está a ouvir ler uma carta do filho que está no Canadá. Obviamente que não sabe ler e isso traz-lhe uma certa humilhação quando tem de pedir a terceiros que lhe façam o favor de lhe lerem a correspondência. Não é a primeira vez que o faço a pedido dele, apenas hoje não temos privacidade e não tenho muito tempo para esperar que estejamos apenas os dois. "Não há problema amigo Pedro, se não se importar leia-ma agora mesmo que se calhar logo não o encontro aqui e pode haver alguma novidade...". A meio da leitura um dos presentes percebe o que estou a fazer e num requinte de enorme crueldade pergunta "Então, ainda não aprendeste a ler?". C. pousa o punho fechado na mesa e pede-me que não ligue. De facto não gostei. C. também percebeu isso mesmo mas continua atento ao que vou lendo até à última linha. Enterneço-me quando beija uma fotografia do filho e da nora que veio no meio das folhas. "Sabe, os meus pais eram pobres, não me mandaram à escola. Tive um vizinho, o Tóino, os pais dele tinham um poucachinho mais de posses e ele foi. Quando foi trabalhar já sabia ler. Um dia, éramos garotos mas já fazíamos vida de mar, a fragata afundou-se. Eu, que não sabia ler, sabia nadar. Ele que sabia ler ficou lá." Acende um cigarro, faz uma pausa e disse bem alto para a personagem que antes o ofendera: "Tu vê lá se sabes nadar, rapazinho..."

6 comentários:

António A. Antunes disse...

é triste. essas coisas que contou. eu também não sou o auge da alegria, mas prontos.

Manu disse...

Très beau!

Zé Clarmonte disse...

Não acho que seja triste. Acho que é apenas a vida a fazer das suas...

Anónimo disse...

'pouco mais há a dizer... excelente..'
'mega'

Anónimo disse...

Eu infelizmente também não sei nadar!
Perdi o tempo a aprender a ler!
Só espero que quando precisar, esteja alguém a meu lado que saiba nadar e me possa salvar.

Tia Brites disse...

Pois eu também não sei nadar. O C. teria que me ajudar no mar. Assim como eu o ajuaria a ler as cartas do filho. É assim.