29 agosto 2006

Canoa, por onde vais?

Há algo de sensual na luz que se espelha num Tejo sossegado ao fim de um dia quente e abafado. Há algo de embalo no dançar do barco em que atravesso esse mesmo rio rumo a Lisboa, uma Lisboa que é sempre um encanto de cidade quando se deixa espreitar de ângulos que não são ainda banais. Talvez seja esta mesma sensualidade que se escapa dos corpos que ali jazem, quase abandonados ao balanço suave do casco sobre as águas e que me faz semicerrar os olhos num princípio de sono que se anuncia devagarinho. É de olhos fechados que somos levados a ouvir os diálogos que nos não dizem respeito, coisa socialmente reprovável, mas que nem sempre podemos evitar. Ela, de ar afogueado, enleada nos braços do namorado, fala da jornada quase completa, enquanto ele, de enlevo a carinho, faz os possíveis por ser compreensivo. "Ai fofo, fartei-me de andar, hoje. Devo ter feito umas três horas a andar. Estou toda assadinha...". Ele, tentando fazer humor e insinuando a perda da consoante, comenta "Ai 'môr se isso em crú já é tão bom, o que fará assadinho." Reabro os olhos reprimindo o riso e é aí que percebo que a maioria dos meus companheiros de viagem não estavam tão adormecidos quanto isso, pois mergulham os olhos em vários pontos, todos eles partilhando um sorriso cúmplice.

9 comentários:

botinhas disse...

uma Lisboa que é sempre um encanto de cidade quando se deixa espreitar de ângulos que não são ainda banais
Ando à procura de uma passagem de nível (ainda com guarda e tudo) na linha de cintura entre Marvila e Braço de Prata. Alguém sabe como se chega lá?

Pedro Aniceto disse...

Fácil. Vai à rotunda das Olaias, desce a Calçada da Picheleira e deixa-te ir sempre a descer. Não podes parar do lado de cá. (Poder podes, dever é qeu não deves, quando lá chegares percebes). Correcção: É mais caracóis que percebes...

Anónimo disse...

Pedro!

Este post é um retrato ao vivo e a cores da Lisboa que tu tão bem descreves porque provavelmente dela tanto gostas. Confesso que me ajudou a perceber um pouquinho dessa paixão que os lisboetas, e não só, têm por esta cidade. Eu admito que não a tenho, e por vezes tinha alguma dificuldade em percebê-la, mas desta vez tocou-me. Parabéns!

Parece-me que cada vez mais começa a fazer sentido a idéia de publicares em livro estas tuas crónicas. Apesar de não ser um grande consumidor de livros, confesso que já li coisas bem piores.

Quando apareces?
Abraço!

Pedro Aniceto disse...

Obrigado Sérgio. Todos nós estamos constantemente rodeados de pequenas histórias, fragmentos das nossas vidas que por uma razão ou outra fixamos. A "receita" para as descrever nem é complexa. Em tempos perguntaram-me se tinha algum método. Fiquei atrapalhado, não por ser segredo mas porque não tinha uma forma escorreita e simples de o revelar. Mas tentei e digo-te o que disse na altura a um grupo de alunos que tinha a paciência de me ouvir. Tens uma vaca a pastar. Para descrever o quadro o mais óbvio é falares da vaca. Não fales. Insinua que está lá a vaca mas não a tornes obsessiva. Dedica-te ao resto. À erva. ao prado, à cerca. Quando acabares tens o quadro meio feito. A vaca esteve sempre lá, mas preocupaste-te com aquilo com que pouca gente mais se preocuparia. É o que eu faço...

Anónimo disse...

yupp!!

Pedro Aniceto disse...

Lisboa é um problema do caraças, pá! A Lisboa que eu conheço, que é tão absurdamente diferente de geração para geração porque vai empurrando os seus filhos para cada vez mais longe, continua a ser uma cidade medieval "armada ao fino". Hoje mesmo atravessava a Praça do Comércio em direcção ao rio e perguntava a mim próprio porque raio tudo aquilo era tão bonito e uns míseros vinte minutos depois, já no Barreiro as coisas eram tão diferentes de feias. Cresci, como sabes em Lisboa onde tudo é tão saloio, tão rural, tão desenraízado. Os pais da minha geração quase não eram de Lisboa! Encontras rituais rurais em todo o canto. Só aqui é possível encontrar "galerias de cromos" tão diferentes de bairro para bairro. A malandragem do Oriente à Picheleira, a altivez quase cigana da Madragoa, a "finesse" da Lapa ou os respectivos sucedâneos de Campo de Ourique. São bairros, quase freguesias em que é possível adivinhar onde estás pelo som que ouves nas ruas...

Anónimo disse...

Provavelmente já muitas teses se fizeram sobre isto, mas de facto não se percebe porque é que quem nasceu em Lisboa, como tu por exemplo, tem de ser atirado para longe. É que os pais da nossa geração não eram de Lisboa, e os que ainda vivem vão-se embora. Os filhos, por sua vez, vêem-se espoliados da sua infância por uma máquina voraz de que aparentemente ninguém gosta mas que teima em persistir, apesar de muitos planos de fixação das pessoas. Realmente não faz sentido. E o mais estranho é que noutros países as coisas não são nada assim, e as pessoas vivem, de facto, a cidade e na cidade.

Pedro Aniceto disse...

Não existe em Portugal um verdadeiro mercado de arrendamento. Tenho para mim que essa é a principal razão.

PJ disse...

Altamente essa capacidade de escrita, como eu gostava de escrever assim, uma descrição EXCELENTE. Por isso é que eu gosto de lhe seguir como um discípulo que segue o Mestre