11 outubro 2006

Aerograma

Mueda, 10 de Março de 1972

Meu amor,

Hoje morreu o Rivelino. Disseram que morreu.
É irremediável, mas queria falar disto a alguém.
Sabes? Quando morre alguém nós ficamos um pouco mais sós. Por isso te escrevo, um dia quando te conhecer, quando nos amarmos e quando eu precisar de dizer isto outra vez a alguém, entrego-te este aerograma, para me fazeres companhia.
Aqui, onde estou, a meio mundo de ti e a meia vida de te conhecer, há uma guerra e todos os dias morre alguém, é como se deus fizesse connosco o que eu estou a fazer agora com aquelas latas de cerveja alinhadas na vedação. Hoje a lata em que deus acertou chama-se Rivelino e eu precisava de chorar um pouco.
...
De vez em quando interrompo este aerograma e dou um tiro numa lata de cerveja e não vejo que prazer pode dar isso. É por pura curiosidade que o faço, para ver o que pode ter sentido deus quando o Rivelino morreu.

Falhei. Não é fácil acertar numa lata de cerveja com uma G3 a esta distância. Se aquela lata fosse o Rivelino, eu hoje talvez não tivesse chorado, talvez não estivesse a escrever este aerograma e talvez não te viesse um dia a conhecer. Mas o Rivelino morreu e eu sinto que é imperioso não deixar que isso passe em vão.

Aponto de novo a G3 e a lata aguarda ao longe que a minha pontaria volte a falhar. Eu enchi as latas de areia e quando lhes acerto em cheio elas explodem.
...
Será por isso que dizem que deus pôs uma alma dentro de nós, será que é para ela explodir quando morremos para ser mais divertido?

Excertos do artigo "Aerograma", publicado no Jornal ELO (Associação dos Deficientes das Forças Armadas)

3 comentários:

Anónimo disse...

Ora aí está uma realidade para a qual muitos de nós não temos tido muita sensibilidade.
É que eles ainda por aí andam, aos milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares, talvez.
E na sua grande maioria ainda não esqueceram os Rivelinos, as latas de cerveja, o estampido dos tiros. Se calhar, nunca os irão esquecer...

Anónimo disse...

foi a merda de vida...

Hélder Figueiras disse...

Coitado!! Já lá está, parecia ele que vendia saúde...