31 outubro 2006

A pauta dos prodígios

Zacarias, Zenóbio, Zulmira e Pedro. Quis o destino, esse malandro valdevinos rei da abencerragem e ao mesmo tempo da abençoada desordenação alfabética, que se viesse esta singular concentração de seres humanos a juntar em tardes de estudo, se entendermos como estudo aquele período de desorientação intestinal que antecede de véspera a data do temido exame escolar, por via de uma insólita turma do ensino secundário, grupo aliás que fazia jus ao cardinal do ensino, para quem o mesmo era absoluta e verdadeiramente secundário.

Quis o destino, e o destino quando quer, marca a hora e espero que esteja já em invernais parâmetros quando não chegará sistematicamente atrasado a muitos compromissos sociais, li algures e é capaz de ser verdade, que estas quatro almas se fundissem (muitas outras houve em que de facto se fundiram) numa só, una e facilmente divisível amálgama de temor e ignorância, quando na pedra da cátedra eram chamados à razão e por vezes à pedra ela mesma. Só perdiam a unicidade quando a pauta liceal os escalava pelo nome próprio, sendo que os últimos são por norma os primeiros e eu, malfadado pê de sua graça, avançava com temor e apagada e vil angústia para as mãos do mestre, amaldiçoando pais e padrinhos que bem podiam ter-me empurrado para as profundezas do alfabeto em vez de me fazer avançar logo ali, a mim, para a frente de batalha. Nem por um só instante me recordaria do exército de Antónios, Anas, Afonsos e Ambrósios que tinham tombado nas pedagógicas linhas antes de mim, eram como que varridos da memória, autênticos soldados desconhecidos das guerras examinadoras.

Lembro-me de haver um Serafim, que também ele para fazer justiça ao seu nome, algures pelo segundo período bateu asas e voou, quem sabe se para parte incerta ou para o céu dos estudantes que também o haverá. Como eram boas as maçãs que o Serafim levava na merenda, desculparás Serafim se te não reconhecer na rua, mas a brincar a brincar já passaram trinta anos, estava aqui capaz de recordar as rosadas cores das maçãs camoesas da tua bem aviada merenda, mas do próprio e das suas borbulhas purulentas da acne juvenil, não conseguiria evocar um só ponto negro que fosse. Lembro-me que da letra éfe para a frente era um deserto de nomes, fossem os Franciscos e os Fredericos chamados, e ali estava eu, de sentidos em alerta, poros inundados de suor temeroso e pouco mais, que o resto era a tentativa de superar a humilhação da prova e nunca, mas nunca, abandonar a sala sem que o trio maravilha que se me seguia conseguisse fazer o mesmo. A Zulmira baixava os olhos na dúvida da resposta, logo os outros se concentravam na questão, tentando mentalmente passar-lhe as informações necessárias, o que por regra nunca acontecia, levei anos a perceber que isso da telepatia (e de muitas outros factos da vidinha) só resulta nos filmes.

O Zenóbio, esse era certinho como destino, fatal como os impostos, sabia sempre tudo (e pouco mais do que isso) o que perguntavam aos outros três, parecia uma maldição, dele mesmo dizia que não tinha sorte, até no nome, Zenóbio, ainda hoje não lhe conheço a origem da nomenclatura, pura preguiça pois claro, que qualquer dia vou "à pregunta" como me dizia o meu avô Joaquim que se safou com toda a certeza a estas escolares agruras por ter apenas a quarta classe e já gozas. Não sei de vocês, Zenóbio, Zacarias e Zulmira. Não sei se sois vivos, se sois mortos, gordos, magros ou a caminho de algum ginásio, se continuais ou não a peregrinação dos últimos a serem chamados a qualquer coisa. Não importa. Não importa mesmo nada. Tudo o que sei é que esta tarde vos imaginei e consequentemente imaginei-nos a todos nós, quando empurrei a vidraça da porta de um sujo e esconso prédio em Lisboa e deparei com uma lustrosa placa negra que tinha inscrito "Zenóglio Oliveira - Advogados". Este também deve ter passado maus bocados e era bonito que o inscrevêssemos no clube dos últimos. Até porque indiscutivelmente deve saber bem o que isso significa...

8 comentários:

Anónimo disse...

A MOTIVACAO QUE ME TROUXE AQUI DEIXOU DE EXISTIR... GUERRAS ENTRE HACKERS PRODUZEM BESTAS... CONSCIENTEMENTE SOU UM DELES... PASSAR BEM

Pedro Aniceto disse...

Tarde piaste, depois falam consigo.

Pedro Aniceto disse...

Pj, obrigado, deu-me muito gozo escrevê-lo.

Anónimo disse...

Raios que este também tive que ir ver:

Zenóbio - Vida dada por Deus (Grego)

Já agora, Zacarias (estava no mesmo site hehehe) - o lembrado por Deus (Hebraico)

E finalmente o que deu mais luta, Zenóglio (Ginocchio) - Joelho (Italiano), portanto podemos dizer que o Mantorras tem o zenóglio todo concubitum...

Anónimo disse...

Ou melhor ainda:

Mantorras zenoglium concubinatus est

Anónimo disse...

Pedro!

Mais uma para o livro.

Muito bom post. Parabéns.

Anónimo disse...

Sem dúvida, os últimos são sempre os primeiros.'Cliches'à parte rapaz, agora para além de 'poeta', já podes dizer que és um 'poeta'com CAP!
PARABÉNS!

P.S.-E não te esqueças do 'desafio'!

NªSrªdo Cresce e Estica.Xi

Anónimo disse...

Pedro,
Parabéns, gostei de ler e ouvir a Sua prosa na voz do Luís Gaspar. É um bonito tributo aos antigos amigos que entretanto perdeu o rasto.
Nas Páginas Amarelas, existe em Quarteira um J. V. Sousa Luis Zenobio, será ele um dos procurados condiscípulos?
Abraço
Manuel