23 abril 2007

Aguenta António de Faria (e a fidalguia)

Eu vou que tudo me parece um sonho. Conhecerá por ventura o leitor aqueles momentos em que homens feitos voltamos a ser meninos? Aqueles instantes em que parecemos pedir que nos possam alçar para um colo do qual sentidamente temos saudades? Provavelmente sim. Provavelmente não, provavelmente chamará vergonha ao acto de o admitir. Acabou de me acontecer, não me envergonho nunca dos meus momentos que são aparentemente de fraqueza, mimo, sabe-se lá se de outras coisas. Ele é velho, pele curtida do sol e do desconsolo e há meses que me fora prometida uma apresentação para efeitos de horticultura. Conhecemo-nos hoje e falámos como se há anos comungássemos da mesma píxide. "Este senhor é o melhor jardineiro que Setúbal já teve". É modesto, não o admite e a mim pouco me atrai contradizer o anfitrião. Falámos das árvores, das folhas e dos sonhos de um e das realidades de outro. O homem que muita gente procura para a salvação dos verdes, Mestre de borbulha e garfo e outras magistrais enxertias diz que já não tem paciência. Gozo tem, mas paciência não. Fala-me das suas meninas, duas figueiras moscatel que há quatro anos cuida com desvelo. Sinto-me um nabo. Um triste. De quando em quando testa-me os conhecimentos. "Que como o senhor parece saber, podem-se casar sementes e caroços no enxerto, não é verdade?". Não Ti João, não é verdade, isso ainda fui a tempo de aprender pela voz severa de outro Ti, de sua graça Joaquim, mas não sorvi da fonte nem a parte décima e agora entristeço-me da preguiça ou da pouca vontade. "Muito bem, o senhor sabe...". Não sei, conte-me mais. Quero saber da época da poda e tudo (ou quase) me é revelado. São os dedos grossos e engelhados que me lembram outras conversas, os dedos a torcerem-se como árvores velhas para me explicarem o correcto corte da borbulha, a época do garfo e o novelo de ráfia que há-de enrolar as nossas conversas. Aqui e ali recordo outras palavras. Pouco me importa que aqui e ali o vocabulário não seja o mesmo, chega a ser de ternura a busca do casamento das palavras. "Que as árvores, senhor, só se multiplicam por causa do pól". Do pól? E caio em mim, e fustigo-me da minha própria impaciência. "Sem pól, não há vida...". Que é como tudo, digo-lhe eu e ele não me entende. Que é como as pessoas, elas mesmas, não havendo pól não há mais nada. O olhar brilha-lhe, acertámos o registo. Ficava ali a noite inteira. Que idade tem Ti João? "Oitenta e cinco, estou acabado". Que ideia, espero por si pelo S.João para enxertarmos a cerejeira. "Estou acabado sim. Falta-me a vista e mais algumas coisas. Muita gente há que me procura para uma ou outra poda, mas já não dá...". Continuamos sintonizados, mas mudámos de banda, estamos na brejeirice. Oh Ti João, não me diga que já se nega a uma poda... "Sabe o que é que costumo dizer-lhes? Que eu a poda ainda dava, mas que perdi a tesoura...".

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns, Pedro!
Mais uma nota digna de(grande) registo.

Quanto à poda, eu também me confesso um aprendiz e portanto desafio-te um post dedicado à mesma.
Ah! e ainda podes escolher se preferes a tesoura ou a borbulha ;)

cristina amil disse...

Um mimo!