Quando ele avançou pela plataforma em pequenos passos, amachucando na mão esquerda um mapa de Lisboa, algo houve que me acordou para não estar perante mais um passageiro banal do Metro de Lisboa. Seco de carne, meão de figura, havia naquele negro um ar régio e altivo. Apoiava-se numa belíssima bengala encastoada do que me pareceu ser ouro, discreto e chamativo ao mesmo tempo, mãos ossudas, magras, cabelo branco o que num negro é tão raro, sinais exteriores de riqueza e sabedoria. Estava perdido, pedira indicações, já eu reparava nele há alguns minutos. Há algo na genética lusófona que nos alerta para a presença de irmãos de cultura. Não é sequer a primeira vez que dou por isso, há nervos que vibram de mansinho e que nos dizem "Este é dos meus...". Ainda fui a tempo de ouvir que lhe davam uma informação errada e se ele há coisa que me dana é que se engane o semelhante, mesmo que o semelhante seja negro, esteja carregado de ouro e seja velho. Deixei passar aquele comboio, sabia que não me enganaria. "Precisa de ajuda?". "Yeahh, preciso, isto é muito confuse". Aquela interjeição não era portuguesa, ainda assim o preciso foi perfeito. Mirei-o de perto. Negro retinto, um brilho de pele que o envolvia e que ao mesmo tempo o destacava de todos quantos passavam. "Quero ir para Queluz, tenho de apanhar um train para Entrecampos, como é que chego lá?". Venha comigo, eu vou para Entrecampos para a estação dos comboios. Os olhos brilharam-lhe, agradeceu assentindo a cabeça, sempre com aquele ar majestoso.
"Estou cá de férias, não conheço nada disto, não venho a Portugal há quase sixty years...". Não se preocupe, eu levo-o lá, não me dá trabalho nenhum. "Thank you! Thank you!". Já lhe adivinhara a pronúncia americana, mas o resto do português era demasiado perfeito para ser estrangeiro. Seguimos os dois, bamboleando na composição, nao falámos até ao destino, limitei-me a ficar a vê-lo, as duas mãos apoiadas no topo da bengala, os olhos pequenos e brilhantes sorvendo a luz que entrava pelas janelas enquanto o metro não mergulhou na escuridão do túnel. Fiz-lhe sinal para sairmos, cavalheirescamente levou a mão à fronte, saudando uma pequena que entrava apressadamente na estação e ouvi-lhe claramente um "G'day miss". Eu fervia de curiosidade. De onde é o meu amigo? "New York, América". Que não tinha razões para estar perdido, afinal falava português, que de Brooklyn para Battery Park teria de mudar de metro muitíssimas mais vezes. "O senhor conhece New York?" Sim, conheço, vou lá de quando em vez. "Sabe, eu estudei cá em Portugal desde pequenino...". Fiquei surpreso, não lhe sabendo a idade podia adivinhá-la e não era de todo em todo normal que um negro tivesse oportunidade de ter feito o ensino básico em Lisboa. "Não, não foi em Lisboa, eu estudei em Tomar...". Não me diga, preparava-lhe eu a surpresa, não me diga que estudou no Nun'Álvares, o queixo tombou-lhe de espanto. Ele não podia adivinhar que o Nun'Álvares em Tomar é um velho conhecido meu, nem haveria de saber que eu sabia que só estudavam no internato do Nun'Álvares dois tipos de pessoas, os corrécios de casos difíceis e os filhos de gente de posses que queria controlo disciplinar absoluto sobre os seus filhos. "Não me diga que também levou umas valentes reguadas do Padre F.?". "I'll be damned, I'll be damned, nunca pensei que alguém ainda se lembrasse do son of a bitch...".
Pediu-me desculpa e sentou-se num dos bancos da gare. "Mas você é novo, não se pode lembrar dele..." E não lembro, apenas recordo relatos de horrores e sevícias, que eu vivi lá perto e tenho muitos amigos que por lá passaram". "Listen, eu vou agora à procura da casa do meu "bráda" que já não vejo desde menino. Vou a Queluz, God Bless you". Trocámos números de telefone. "A última vez que o vi, lembro-me da nossa mãe estar a assar sardines...". Há lá coisa mais portuguesa que termos como última memória uma mãe a assar sardinhas? Quando o deixei na carruagem do comboio que o haveria de levar a Queluz, tive uma pena imensa de não ir com ele e de ouvir o resto da história. Um segundo antes das portas se fecharem, apertou-me a mão, colocou a outra sobre as costas da minha e sussurrou "I'll be damned, que coisa esta...".
"Estou cá de férias, não conheço nada disto, não venho a Portugal há quase sixty years...". Não se preocupe, eu levo-o lá, não me dá trabalho nenhum. "Thank you! Thank you!". Já lhe adivinhara a pronúncia americana, mas o resto do português era demasiado perfeito para ser estrangeiro. Seguimos os dois, bamboleando na composição, nao falámos até ao destino, limitei-me a ficar a vê-lo, as duas mãos apoiadas no topo da bengala, os olhos pequenos e brilhantes sorvendo a luz que entrava pelas janelas enquanto o metro não mergulhou na escuridão do túnel. Fiz-lhe sinal para sairmos, cavalheirescamente levou a mão à fronte, saudando uma pequena que entrava apressadamente na estação e ouvi-lhe claramente um "G'day miss". Eu fervia de curiosidade. De onde é o meu amigo? "New York, América". Que não tinha razões para estar perdido, afinal falava português, que de Brooklyn para Battery Park teria de mudar de metro muitíssimas mais vezes. "O senhor conhece New York?" Sim, conheço, vou lá de quando em vez. "Sabe, eu estudei cá em Portugal desde pequenino...". Fiquei surpreso, não lhe sabendo a idade podia adivinhá-la e não era de todo em todo normal que um negro tivesse oportunidade de ter feito o ensino básico em Lisboa. "Não, não foi em Lisboa, eu estudei em Tomar...". Não me diga, preparava-lhe eu a surpresa, não me diga que estudou no Nun'Álvares, o queixo tombou-lhe de espanto. Ele não podia adivinhar que o Nun'Álvares em Tomar é um velho conhecido meu, nem haveria de saber que eu sabia que só estudavam no internato do Nun'Álvares dois tipos de pessoas, os corrécios de casos difíceis e os filhos de gente de posses que queria controlo disciplinar absoluto sobre os seus filhos. "Não me diga que também levou umas valentes reguadas do Padre F.?". "I'll be damned, I'll be damned, nunca pensei que alguém ainda se lembrasse do son of a bitch...".
Pediu-me desculpa e sentou-se num dos bancos da gare. "Mas você é novo, não se pode lembrar dele..." E não lembro, apenas recordo relatos de horrores e sevícias, que eu vivi lá perto e tenho muitos amigos que por lá passaram". "Listen, eu vou agora à procura da casa do meu "bráda" que já não vejo desde menino. Vou a Queluz, God Bless you". Trocámos números de telefone. "A última vez que o vi, lembro-me da nossa mãe estar a assar sardines...". Há lá coisa mais portuguesa que termos como última memória uma mãe a assar sardinhas? Quando o deixei na carruagem do comboio que o haveria de levar a Queluz, tive uma pena imensa de não ir com ele e de ouvir o resto da história. Um segundo antes das portas se fecharem, apertou-me a mão, colocou a outra sobre as costas da minha e sussurrou "I'll be damned, que coisa esta...".
4 comentários:
Este é o tipo de pessoa que me faz sentir viva. Faz-me sentir esponja, querer absorver tudo, tudinho.
Agrada-me que o teu olhar não se tenha perdido nos anos e nas banalidades do dia-a-dia e continue a VER o que nos rodeia.
"I'll be damned!!!"
O mundo é mesmo uma aldeola! Ou então há algum tipo de força que nos obriga a circular nas mesmas trajectórias.
Sabes que pouco faltou para eu ir lá parar também(ao Nun'Álvares), quando fui estudar para o 10º ano, para Tomar. Obviamente com a grande diferença de, nessa altura, o "colégio", como era conhecido na altura, já não passar de uma banal escola secundária.
Esta era boa contada pelo Truca!
Grande história.
O filme é genial, embora não consiga encontrar a ligação com esta história.
Uma das coisas mais engraçadas de Lisboa é ao passear nas ruas e no metro nos podermos cruzar com pessoas de todo o mundo.
É no metro que reparo que quanto mais avançada for a idade de um negro, mais jovem parece.
Enviar um comentário