Ponto prévio: Não tenho por hábito escrever histórias macabras e na verdade embora pareça, esta de macabro não tem nada. Mas a verdade é que na caixa de comentários da entrada anterior a conversa derivou para aqueles que já foram e eu prometi contar a história de como conheci a minha avó depois de ela se ter finado uma carrada de anos antes...
Coisa terrena e sem dramas e facilmente comprovável experimentalmente. Sucede que quando eu tinha uns doze/treze anos o meu pai me convocou para uma trasladação dos restos mortais da senhora dona Amália. Ele lá entendeu que eu já tinha idade para "assuntos de adultos" e informou-me que iríamos ao cemitério acompanhar o levantamento dos ossos para uma outra sepultura. Não fiquei lá muito impressionado, não me pareceu de bom tom dar parte fraca e numa bela manhã de Sábado lá fomos ao encontro do coveiro para proceder à operação. Suponho que à segunda cavadela do coveiro na campa em questão eu já estivesse um bocado entediado com a manobra, afinal eu já vira cavar o suficiente nas campanhas da batata do meu avô e aquilo não me pareceu ser nada de entusiasmante, pelo que fui perseguir lagartixas para o muro do fundo do cemitério (ainda hoje é um belo spot de lagartada...) operação que requer olho vivo e mão certeira como alguns de nós bem sabemos...
A verdade é que de quando em vez eu voltava à campa para ver como paravam as modas e numa dessas vezes percebi que o ambiente não era o melhor. O coveiro, que esforçadamente já tinha cavado quanto bastasse, gritava para o meu pai que tinha havido um engano, que não era aquela campa patati, patatá e que corríamos todos perigo de vida pois podíamos morrer todos logo ali... Claro que esqueci de imediato as lagartixas, aquilo sim era muito mais emocionante, a ideia de uma ameaça de morte não era coisa que se desprezasse a um sábado de sol... O coveiro insistia que a urna era "fresca" (assim se designam os enterramentos recentes), o meu pai jurava que não (até eu sabia que aquela era a campa que ele visitava com frequência). Estávamos neste impasse do "é esta, não é esta" quando o coveiro me pediu que fosse à casa do Padre pedir para avisar o Delegado de Saúde, espera aí que já vais, daqui não saio daqui ninguém me tira, isso é que era bom, não querem lá ver o desmancha prazeres. Em enorme alvoroço lá se foi pedindo às poucas pessoas que naquela hora estavam no cemitério (que é pequeno) que saissem, o que consegui fazer já que isso não me obrigava a sair dali e toda a gente tem um certo ascendente quando sussura "Têm ali um morto enganado...".
Veio o Padre, veio mais um "perito" que não me cheirava que fosse autoridade nenhuma porque tinha vindo da taberna (e vai daí não sei e nunca virei a saber) e fez-se ali uma assembleia estranha, tudo a olhar para o fundo do buraco onde ainda só se via terra mas onde se adivinhava o plano liso da urna. Pá daqui, pá dali, lá apareceram as tábuas, as ferragens, o sempre eterno crucifixo, tudo com ar de quem já tinha visto melhores dias de desconjuntado que estava. Nova paragem dos trabalhos, o meu pai um bocado aflito, os outros ainda mais, quando o "dito" perito declara alto e bom som "isto não pode ter vinte anos, é campa enganada com certeza". Cresce a angústia, a emoção já inunda a cena, o que fazemos, tiram-se as tábuas e ficamos já com a certeza. Comigo empoleirado num monte de terra, a tentar não resvalar para dentro do buraco (é um trauma antigo e de cada vez que vejo isto no cinema ainda me lembro da imagem), lá vieram as tábuas, as ferragens, o crucifixo (que me avisaram logo que não era coisa com que se pudesse ficar, tá mal...) e o que aparece debaixo da madeira? Uma bela cobertura de chumbo que alguém em má hora não tivera o vislumbre de retirar... Caso não saibam e aprendi-o mais tarde noutras operações de exumação, quando a cobertura de chumbo (era o que era usado antigamente, agora é apenas zinco) não era retirada, a produção de gases não tem por ende escapar e dá uma forma estranha ao conjunto de chumbo selado, fica oval, parece um menir arredondado.
É nesta altura que chega o Delegado de Saúde, aborrecido que nem um perú de Natal e decreta que só há uma forma de resolver aquilo, que é precisamente furar o chumbo e fugir a sete pés se se ouvir algum silvo que significará que existe gás no interior. Por esta altura já eu estava um bocado azulado de não respirar há uns bons minutos, alguém reparou e disse "Pá, enquanto não furarmos isto podes respirar", ainda bem que avisam quando não fico já aqui, o buraco já está aberto e tudo... Ora surge novo impasse, como é que furamos isto? Há no ar uma certa piedade relativamente à forma, eu alvitro que a picareta que ali jaz (salvo seja) ao lado parece-me um bom método, que não, que nem pensar, aos mortos é devido um certo respeito, nada de andar a picaretar-lhes o chumbo, que parece mal, ao morto há-de fazer uma grande diferença mas ninguém liga aos meus alvitres, ainda é cedo, não tem credibilidade nenhuma o gajo que ainda há minutos apedrejava lagartixas num muro e agora vem para aqui dar conselhos a quem sabe destes ofícios.
Para minha diversão, alvitrei segunda vez, e pasme-se, aceitaram a sugestão. Alguém, eu é que não com toda a certeza!, pegaria na estaca metálica do número da campa, uma placa de ferro negra com os números vazados, dava um instrumento perfeito, até já o tinha visto num filme de vampiros, claro que não citei esta parte pois já me pareceu exagerado, dizia eu do alto meu monte de terra, alguém pega nisto e espeta a coisa no chumbo. Olha que bela ideia, se não o disseram eu pelo menos gostava que o tivessem pensado senão mesmo dito, dá cá isso, parece mesmo a calhar, calhou, a tensão em picos insuportáveis, eu à espera do silvo qual Ben Johnson nos tacos de uma corrida de cem metros, cloc fez a estaca, não há silvo para ninguém, o chumbo furado, a montanha pariu um rato, e por um lado ainda bem porque me lembrara entretanto que tinha um pullover ao fundo do cemitério e ninguém me perdoaria, nem mesmo eu, que um tipo morresse envenenado por gás por causa de um pullover onde me recordo perfeitamente de conseguir caber três vezes.
Furo feito, estamos todos a olhar para o mesmo sítio, a mão do coveiro certeira, a estocar mais duas ou três vezes a plúmbea superfície oval, dá cá isso, agora faço eu, olha que giro há bocado ninguém queria pegar no ferro, agora parecem fazer fila para esburacar, eu cá acho que eles ainda têm esperança de achar uma bolsinha de gás, nem que seja pelo cheiro. Está nisto a assistência, furo aqui e mais ali até que alguém se lembrou de perguntar se haveria por ali uma tesoura de chapa, disparate diz o coveiro, não há tesoura de chapa coisa nenhuma, não faz parte do ferramental, uma picareta, um balde, uma pá e já gozas, isto é, já cavas, quem se haveria de lembrar deste trabalho de não tirar o chumbo, isto é coisa que se faz sempre no funeral e não depois, está aqui um gajo mortinho para ir almoçar (piada duvidosa do narrador) e ainda temos de ir à procura de uma tesoura.
Apareceu, não me perguntem de onde, mas a tesoura apareceu e coube ao coveiro a difícil tarefa de rodear o féretro, zaca, zaca, zaca como quem rasga pano e ao fim de uma pancadaria de zacas, levou a mão à surrada pala do boné e pediu autorização ao meu pai para retirar a cobertura. Há algo de estranhamente místico neste gesto do coveiro que nunca esquecerei, floreados literários à parte. Um tipo pode cuspir nas mãos enquanto cava, ajuda a aumentar o atrito da tracção do cabo. Pode andar à pezada (e à pazada!) em cima da tumba (quem nunca sentiu uma ponta de culpa por pisar uma campa de cemitério que me atire o primeiro torrão...), pode andar a esburacar o chumbo com uma estaca, mas sente-se na obrigação de se descobrir e afivelar um ar piedoso quando está na eminência de um contacto imediato com um corpo morto e enterrado. Adiante, lembro-me deste gesto de enrolar o boné na mão, limpar a testa suada, e perguntar se podia. Pergunta estranha, estávamos ali todos para isso mesmo, engasgados no suspense, não disse eu, mas vi a angústia dos olhos do meu pai, que sem uma palavra assentiu com a cabeça e vamos lá puxar a pesada capa de chumbo para fora do buraco.
Não há forma literária de descrever o que senti ao olhar para dentro do que restava da urna... Quer dizer, há-de haver, eu é que não a quero procurar, talvez seja a minha forma de respeito para com os mortos da mesma maneira que o outro tirou o boné. O corpo estava absolutamente preservado, as mãos de dedos magros postas em prece, um singelo terço de contas negras. A face semi coberta por um véu fino e também ele negro estava absolutamente serena, de olhos fechados, como que dormindo. Quando olhei em pormenor não tive nenhuma espécie de choque. Era a mesma pessoa que me habituara a ver nas fotografias emolduradas que tinha em casa. O meu pai não suportou este avistamento e pela primeira vez eu percebi de facto que aquele era um assunto de adultos no qual eu, de repente, era encarregue. Na ausência dele, caiam em cima de mim, pobre coitado, que ainda agora caçava impiedosamente lagartixas no muro do fundo, as responsabilidades das decisões. Quando todos os olhos se viraram para mim, sugeri que se voltasse a tapar o corpo, agora sem chumbo, que a terra lhe seja leve, assim pensei como se tivesse sido agora. Num outro detalhe místico e de enorme significado, o coveiro passou-me o cabo da pá e aprendi naquele mesmo instante uma outra lição, a de que compete ao sangue tratar dos seus próprios mortos, o simbolismo do primeiro derrube de terra, a mesma que lhe há-de ser leve, assim seja, amén. Quando o fiz, quando verti a primeira porção por cima do corpo seco e verde, nem percebi logo ali o que sucedeu. Só quando me chamaram a atenção é que de facto assimilei que tudo o que ali restava, se dissolvera em pó ao primeiro impacto. Pó, um monte de pó que apenas parecia ter esperado por aquele momento para se desmoronar.
Coisa terrena e sem dramas e facilmente comprovável experimentalmente. Sucede que quando eu tinha uns doze/treze anos o meu pai me convocou para uma trasladação dos restos mortais da senhora dona Amália. Ele lá entendeu que eu já tinha idade para "assuntos de adultos" e informou-me que iríamos ao cemitério acompanhar o levantamento dos ossos para uma outra sepultura. Não fiquei lá muito impressionado, não me pareceu de bom tom dar parte fraca e numa bela manhã de Sábado lá fomos ao encontro do coveiro para proceder à operação. Suponho que à segunda cavadela do coveiro na campa em questão eu já estivesse um bocado entediado com a manobra, afinal eu já vira cavar o suficiente nas campanhas da batata do meu avô e aquilo não me pareceu ser nada de entusiasmante, pelo que fui perseguir lagartixas para o muro do fundo do cemitério (ainda hoje é um belo spot de lagartada...) operação que requer olho vivo e mão certeira como alguns de nós bem sabemos...
A verdade é que de quando em vez eu voltava à campa para ver como paravam as modas e numa dessas vezes percebi que o ambiente não era o melhor. O coveiro, que esforçadamente já tinha cavado quanto bastasse, gritava para o meu pai que tinha havido um engano, que não era aquela campa patati, patatá e que corríamos todos perigo de vida pois podíamos morrer todos logo ali... Claro que esqueci de imediato as lagartixas, aquilo sim era muito mais emocionante, a ideia de uma ameaça de morte não era coisa que se desprezasse a um sábado de sol... O coveiro insistia que a urna era "fresca" (assim se designam os enterramentos recentes), o meu pai jurava que não (até eu sabia que aquela era a campa que ele visitava com frequência). Estávamos neste impasse do "é esta, não é esta" quando o coveiro me pediu que fosse à casa do Padre pedir para avisar o Delegado de Saúde, espera aí que já vais, daqui não saio daqui ninguém me tira, isso é que era bom, não querem lá ver o desmancha prazeres. Em enorme alvoroço lá se foi pedindo às poucas pessoas que naquela hora estavam no cemitério (que é pequeno) que saissem, o que consegui fazer já que isso não me obrigava a sair dali e toda a gente tem um certo ascendente quando sussura "Têm ali um morto enganado...".
Veio o Padre, veio mais um "perito" que não me cheirava que fosse autoridade nenhuma porque tinha vindo da taberna (e vai daí não sei e nunca virei a saber) e fez-se ali uma assembleia estranha, tudo a olhar para o fundo do buraco onde ainda só se via terra mas onde se adivinhava o plano liso da urna. Pá daqui, pá dali, lá apareceram as tábuas, as ferragens, o sempre eterno crucifixo, tudo com ar de quem já tinha visto melhores dias de desconjuntado que estava. Nova paragem dos trabalhos, o meu pai um bocado aflito, os outros ainda mais, quando o "dito" perito declara alto e bom som "isto não pode ter vinte anos, é campa enganada com certeza". Cresce a angústia, a emoção já inunda a cena, o que fazemos, tiram-se as tábuas e ficamos já com a certeza. Comigo empoleirado num monte de terra, a tentar não resvalar para dentro do buraco (é um trauma antigo e de cada vez que vejo isto no cinema ainda me lembro da imagem), lá vieram as tábuas, as ferragens, o crucifixo (que me avisaram logo que não era coisa com que se pudesse ficar, tá mal...) e o que aparece debaixo da madeira? Uma bela cobertura de chumbo que alguém em má hora não tivera o vislumbre de retirar... Caso não saibam e aprendi-o mais tarde noutras operações de exumação, quando a cobertura de chumbo (era o que era usado antigamente, agora é apenas zinco) não era retirada, a produção de gases não tem por ende escapar e dá uma forma estranha ao conjunto de chumbo selado, fica oval, parece um menir arredondado.
É nesta altura que chega o Delegado de Saúde, aborrecido que nem um perú de Natal e decreta que só há uma forma de resolver aquilo, que é precisamente furar o chumbo e fugir a sete pés se se ouvir algum silvo que significará que existe gás no interior. Por esta altura já eu estava um bocado azulado de não respirar há uns bons minutos, alguém reparou e disse "Pá, enquanto não furarmos isto podes respirar", ainda bem que avisam quando não fico já aqui, o buraco já está aberto e tudo... Ora surge novo impasse, como é que furamos isto? Há no ar uma certa piedade relativamente à forma, eu alvitro que a picareta que ali jaz (salvo seja) ao lado parece-me um bom método, que não, que nem pensar, aos mortos é devido um certo respeito, nada de andar a picaretar-lhes o chumbo, que parece mal, ao morto há-de fazer uma grande diferença mas ninguém liga aos meus alvitres, ainda é cedo, não tem credibilidade nenhuma o gajo que ainda há minutos apedrejava lagartixas num muro e agora vem para aqui dar conselhos a quem sabe destes ofícios.
Para minha diversão, alvitrei segunda vez, e pasme-se, aceitaram a sugestão. Alguém, eu é que não com toda a certeza!, pegaria na estaca metálica do número da campa, uma placa de ferro negra com os números vazados, dava um instrumento perfeito, até já o tinha visto num filme de vampiros, claro que não citei esta parte pois já me pareceu exagerado, dizia eu do alto meu monte de terra, alguém pega nisto e espeta a coisa no chumbo. Olha que bela ideia, se não o disseram eu pelo menos gostava que o tivessem pensado senão mesmo dito, dá cá isso, parece mesmo a calhar, calhou, a tensão em picos insuportáveis, eu à espera do silvo qual Ben Johnson nos tacos de uma corrida de cem metros, cloc fez a estaca, não há silvo para ninguém, o chumbo furado, a montanha pariu um rato, e por um lado ainda bem porque me lembrara entretanto que tinha um pullover ao fundo do cemitério e ninguém me perdoaria, nem mesmo eu, que um tipo morresse envenenado por gás por causa de um pullover onde me recordo perfeitamente de conseguir caber três vezes.
Furo feito, estamos todos a olhar para o mesmo sítio, a mão do coveiro certeira, a estocar mais duas ou três vezes a plúmbea superfície oval, dá cá isso, agora faço eu, olha que giro há bocado ninguém queria pegar no ferro, agora parecem fazer fila para esburacar, eu cá acho que eles ainda têm esperança de achar uma bolsinha de gás, nem que seja pelo cheiro. Está nisto a assistência, furo aqui e mais ali até que alguém se lembrou de perguntar se haveria por ali uma tesoura de chapa, disparate diz o coveiro, não há tesoura de chapa coisa nenhuma, não faz parte do ferramental, uma picareta, um balde, uma pá e já gozas, isto é, já cavas, quem se haveria de lembrar deste trabalho de não tirar o chumbo, isto é coisa que se faz sempre no funeral e não depois, está aqui um gajo mortinho para ir almoçar (piada duvidosa do narrador) e ainda temos de ir à procura de uma tesoura.
Apareceu, não me perguntem de onde, mas a tesoura apareceu e coube ao coveiro a difícil tarefa de rodear o féretro, zaca, zaca, zaca como quem rasga pano e ao fim de uma pancadaria de zacas, levou a mão à surrada pala do boné e pediu autorização ao meu pai para retirar a cobertura. Há algo de estranhamente místico neste gesto do coveiro que nunca esquecerei, floreados literários à parte. Um tipo pode cuspir nas mãos enquanto cava, ajuda a aumentar o atrito da tracção do cabo. Pode andar à pezada (e à pazada!) em cima da tumba (quem nunca sentiu uma ponta de culpa por pisar uma campa de cemitério que me atire o primeiro torrão...), pode andar a esburacar o chumbo com uma estaca, mas sente-se na obrigação de se descobrir e afivelar um ar piedoso quando está na eminência de um contacto imediato com um corpo morto e enterrado. Adiante, lembro-me deste gesto de enrolar o boné na mão, limpar a testa suada, e perguntar se podia. Pergunta estranha, estávamos ali todos para isso mesmo, engasgados no suspense, não disse eu, mas vi a angústia dos olhos do meu pai, que sem uma palavra assentiu com a cabeça e vamos lá puxar a pesada capa de chumbo para fora do buraco.
Não há forma literária de descrever o que senti ao olhar para dentro do que restava da urna... Quer dizer, há-de haver, eu é que não a quero procurar, talvez seja a minha forma de respeito para com os mortos da mesma maneira que o outro tirou o boné. O corpo estava absolutamente preservado, as mãos de dedos magros postas em prece, um singelo terço de contas negras. A face semi coberta por um véu fino e também ele negro estava absolutamente serena, de olhos fechados, como que dormindo. Quando olhei em pormenor não tive nenhuma espécie de choque. Era a mesma pessoa que me habituara a ver nas fotografias emolduradas que tinha em casa. O meu pai não suportou este avistamento e pela primeira vez eu percebi de facto que aquele era um assunto de adultos no qual eu, de repente, era encarregue. Na ausência dele, caiam em cima de mim, pobre coitado, que ainda agora caçava impiedosamente lagartixas no muro do fundo, as responsabilidades das decisões. Quando todos os olhos se viraram para mim, sugeri que se voltasse a tapar o corpo, agora sem chumbo, que a terra lhe seja leve, assim pensei como se tivesse sido agora. Num outro detalhe místico e de enorme significado, o coveiro passou-me o cabo da pá e aprendi naquele mesmo instante uma outra lição, a de que compete ao sangue tratar dos seus próprios mortos, o simbolismo do primeiro derrube de terra, a mesma que lhe há-de ser leve, assim seja, amén. Quando o fiz, quando verti a primeira porção por cima do corpo seco e verde, nem percebi logo ali o que sucedeu. Só quando me chamaram a atenção é que de facto assimilei que tudo o que ali restava, se dissolvera em pó ao primeiro impacto. Pó, um monte de pó que apenas parecia ter esperado por aquele momento para se desmoronar.
4 comentários:
Ashes to ashes...
Se fosse na minha terra, estou certo de que alguém, a dada altura, teria saído pelo cemitério a gritar: SANTA! SANTA!
..e num "estalar de dedos", como que não quer a coisa, escapam-lhe da memória histórias destas! Este tipo é um génio!
Obrigado Pedro
ASHES to ASHES é a perfeita RESPOSTA!
Pedro, um dia te levarei no meu Monte a um lindo Quercus_Suber!
Sítio que muito poucos conhecem!
Cinzas do meu melhor Amigo, o Karl, lá repousam para sempre!
Não é triste!!!
Muito Champagne se bebe em sua Memória!!! LOL
Mas até lá chegar, muito custa...
João
muito bem escrito e descrito, sim senhor...
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